domingo, 30 de setembro de 2012

Muito sensato. por Miguel do Rosário


Tenho acompanhado quase tudo que se diz nas redes sociais e nos blogs sobre o julgamento do mensalão. O evento suscita várias leituras simultâneas. Há uma acalorada discussão, por exemplo, em torno das teses jurídicas formuladas pelos ministros. Isto é muito saudável por estimular um pensamento mais crítico em relação às teorias constitucionais, que não são letras mortas, mas criações vivas da nossa cultura, do nosso parlamento e da própria jurisdição produzida por nossa corte superior. Em última instância, o falatório pauta o Congresso, o STF, os formadores de opinião. O que nós somos, enquanto sociedade organizada em torno de leis e costumes, será o resultado desses embates.
Há também um debate político em torno do julgamento, que talvez seja ainda mais importante, por causa da repercussão política do evento, e também pelo fato de que ele tem sido, desde que eclodiu, descaradamente instrumentalizado por setores da mídia para atacarem a esquerda partidária.
É aí que vemos prosperar muita confusão, principalmente pelo motivo óbvio de que há interesses partidários, políticos e ideológicos conflitantes envolvidos, com o agravante de estarmos na fase mais intensa de uma campanha eleitoral.
Alguns entendem as minhas críticas ao STF como uma defesa do PT. “Ah, se fosse o PSDB no banco dos réus, não falariam nada disso”.
Não é verdade. Se os réus fossem do DEM, eu diria a mesma coisa. O que acontece é que um julgamento nesse estilo jamais aconteceria se os réus fossem do PSDB ou DEM. Então a comparação é esdrúxula. Os réus do DEM podem ser condenados duramente, mas não haverá nenhum proselitismo político e ideológico em torno de seu julgamento.
Não defendo o PT das acusações de lavagem de dinheiro, corrupção, formação de quadrilha ou seja lá que termos bombásticos a Procuradoria usou na sua peça acusatória.
Também não questiono (embora tenha o direito de fazê-lo) a honestidade e o saber jurídico de nossos ministros do STF.
Minha crítica refere-se, em primeiro lugar, à volúpia com que falam à imprensa de um processo em curso, inflamando ainda mais um ambiente já volátil e causando tumulto político justamente num momento eleitoral. Isso é irresponsabilidade. O STF tem a obrigação de manter a harmonia com outros poderes e ter uma postura imparcial diante dos embates partidários.
De todo modo, essa não é a crítica mais importante que eu faço. Talvez seja mesmo inevitável que alguns ministros ajam dessa maneira, devido à presença invasiva da imprensa nos salões do STF, e da agressividade constante dos repórteres. Ministros do STF não querem ser inimigos da mídia, então podemos entender esse desejo ou condescendência em aplacar a voracidade dos jornalistas.
A minha discordância em relação aos ministros do STF também não é centrada na disposição ou não deles em condenar os réus, e sim nos argumentos políticos que eles tem usado para fazê-lo. Sobretudo, discordo da tese de compra de votos, porque ela se baseia, em grande parte, numa visão preconceituosa dos acordos políticos.
O mensalão do PT, assim como o do DEM e do PSDB, podem ter em comum os crimes de corrupção , lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Mas a compra de apoio político só poderia ser provada através de uma testemunha, confissão ou documento que comprovasse que aquele parlamentar votou, em determinada votação específica, porque recebeu dinheiro.
O que eu discordo, sobretudo, é de asserções com essa, do ministro Celso de Mello, proferida ontem:
O ministro mais antigo no tribunal, Celso de Mello, afirmou que o crime de corrupção do servidor público está associado ao “ato de ofício”, e que esse ato, no caso dos parlamentares, é a participação nas votações do Congresso Nacional. (…) “no âmbito do parlamento, o ato de ofício do congressista é por excelência o ato de votar.”
O tribunal está condenando dezenas de parlamentares que sequer receberam dinheiro do mensalão. Quem recebeu foram suas lideranças. E os ministros fundamentam seu entendimento sobre esse ponto com observações absolutamente leigas, equivocadas, sobre como partidos costuram acordos políticos, antes e depois das eleições. Os ministros emitem juízos de valor antidemocráticos sobre a movimentação financeira eleitoral, fingindo desconhecer que as eleições, no Brasil, mexem com grande quantidade de recursos, antes e depois dos pleitos, e que boa parte destes se dá na forma de caixa 2. Essas são as entranhas da nossa democracia. E não só nossa, pois Caixa 2 eleitoral existe no mundo inteiro. No Brasil, não é sequer tipicado como crime, mas como infração eleitoral. Deve ser combatida, não através de punições inquisitoriais, mas aprimorando nossas leis para trazer para a legalidade uma prática comum a todos os partidos. Democracia é eleição, eleição é concorrência e despesa de campanha. Essas são realidades irrefutáveis da nossa democracia que não devem satanizadas junto à opinião pública conforme sempre fez a mídia, agora com auxílio do judiciário.
A votação da reforma da previdência, por exemplo, aconteceu após uma dolorosa negociação entre diversas forças políticas e sociais. Até eu participei, humildemente, como blogueiro, desse debate. Lembro que eu ficara muito impressionado com a situação do meu pai, que aposentara-se ganhando R$ 900, apesar de sempre ter pago o teto do INSS. Isso porque o INSS discriminava o trabalhador do setor privado. E a reforma corrigiu isso, em parte ao menos.
Houve debates, negociações políticas intensas. Nesses momentos chave todos cobram de todos: indicações, dívidas de campanha, compromissos eleitorais futuros, mais espaço no governo, etc. É assim que funcionam as entranhas da democracia, no mundo inteiro. Não é uma reunião de anjos, com certeza. Muitos interesses menores entram no jogo. Entretanto, como dizia Hegel:
Perseguindo seus interesses pessoais, os homens fazem história e são, ao mesmo tempo, as ferramentas e os meios de qualquer coisa de mais elevada, de mais vasta, que eles ignoram, e que eles realizam de maneira inconsciente.
Então mandem os réus ao cadafalso político por corrupção, lavagem de dinheiro, o que for, mas para condenar parlamentares apenas por “votarem”, ou seja, fazerem seu trabalho, tenham provas, por favor: confissões, testemunhas, provas documentais. Ilações antidemocráticas não servem. O STF não pertence aos juízes, mas ao povo brasileiro, a nós todos, e depois de tanta luta para construir uma democracia moderna e estável, não a queremos ver manchada com a nódoa de um golpismo judicial conservador, oportunista, preconceituoso e arbitrário.

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