Esclarecendo: Razões históricas do ódio palestrino
Cabe
uma revisita ao tema que frequentemente é debatido sem a devida informação
histórica. Seria o Palmeiras o resultado de uma dissidência direta do
Corinthians?
A
resposta é “não”. No entanto, trata-se de um “não” complexo. No ambiente
político da segunda década do Século 20, os dois clubes expressam diferentes
concepções filosóficas nascidas na mesma colônia.
Ao
contrário do que se possa imaginar, a Itália nunca teve coesão. Já na Roma
antiga, havia forte inimizade entre “optimates” e “populares”. São estes
primeiros, da elite conservadora, que combatem Julio Cesar, especialmente por
seu empenho em conceder direitos às massas.
No
ambiente político da segunda metade do Século 19, a Itália é um país
profundamente dividido e confuso. A rigor, a Itália unificada moderna surge
somente em 1861, quando Vittório Emanuelle II de Savoia converteu-se em
soberano.
É
época de furioso debate político. No cenário do Risorgimento, o pensamento
político do carbonário Giuseppe Mazzini não é marxista, mas é republicano e, em
teoria, progressista. O país unificado, ao contrário, ganha um soberano, da Casa
de Savoia.
A
Itália cultiva ódios seculares. Em 1868, por exemplo, um jovem de 14 anos
protesta contra a injustiça social numa carta raivosa enviada ao rei. Pela
“insolência”, acaba preso. Seu nome é Errico Malatesta.
Esse
revolucionário precoce adere ao anarquismo já em 1871. É um dos mais dedicados
militantes da causa. Nos anos seguintes, trata de disseminá-la também entre os
italianos que emigravam para as Américas.
Cabe
dizer que no fim do Século 19 havia desemprego e fome na Itália. Durante
décadas, muita gente foi simplesmente “exportada” como mão de obra barata. O
objetivo do governo era aliviar-se do excedente populacional.
A
contratação desses trabalhadores atendia aos interesses do capitalismo nascente
nas Américas. No Brasil, o povo da bota substituía os negros nas senzalas, em
situações análogas, trabalhando duramente para os barões do café.
Os
militantes ítalo-anarquistas foram os primeiros a protestar contra o sistema de
exploração do trabalho imigrante. Na aurora do Século 20, a colônia é fortemente
influenciada pelos escritos de Oreste Ristori e Gigi Damiani, que escreveram em
jornais como o La Battaglia e se dedicaram à criação de escolas
libertárias.
Na
capital paulista, o movimento anarquista influencia fortemente os trabalhadores
da indústria nascente, de modo especial em bairros como Lapa, Bom Retiro, Brás e
Belém.
Cabe
lembrar que parte dos imigrantes da “bota” já era, desde a década de 1890,
influenciada por ideias conservadoras e nacionalistas dos “fasci”, grupos de
doutrinação política que atuavam em várias cidades italianas.
Nas
primeiras décadas do século passado, o pensamento de extrema-direita,
autoritário e violento, amadurece numa Itália empobrecida e dividida. Vale
destacar que o fascismo adquire solidez doutrinária já em 1919, por meio dos
escritos e da ação de propaganda de Benito Mussolini.
Essa
corrente tem, entre outras características, uma ideia de suprematismo. São
italianos saudosos da glória romana, quase sempre praticantes da xenofobia,
mesmo quando vivem em outros países.
O
Sport Club Corinthians Paulista nasce fortemente influenciado pelas ideias
anarco-humanistas. A rigor, muitos intelectos anarquistas viam o futebol como
elemento de alienação. No entanto, incentivavam qualquer ação que gerasse
protagonismo das massas trabalhadores, mesmo na área do esporte.
Afirma-se
que Michelle (Miguel) Bataglia, nosso primeiro presidente, teria aprendido sobre
a doutrina anarquista no período em que trabalhou na empresa de energia Light,
nos primeiros anos do Século 20.
Bataglia
pronunciou a frase que nos define: “o Corinthians vai ser o time do povo, e é o
povo que vai fazer o time”. Trata-se de “ação direta”, princípio libertário
segundo o qual o cidadão deve atuar de forma prática para aprimorar a sociedade.
Essa é a busca de protagonismo defendida pelos ítalo-anarquistas.
Nesse
segmento da comunidade ítalo-brasileira via-se já presente o apreço pela
diversidade, pela miscigenação e pela universalização de direitos.
O
projeto de fundação já exibe essa característica. Não importa a raça e o credo
do associado. O objetivo é criar uma experiência transdisciplinar (os fundadores
já falavam em bibliotecas) de inclusão e compartilhamento de
experiências.
O
Palestra Itália surge em 1914, supostamente orgulhoso da performance do
Pró-Vercelli e Torino, agremiações que excursionaram pelo Brasil. O objetivo
claro é criar um grande clube que congregue e represente a colônia italiana da
cidade.
Entre
os fundadores, destacam-se funcionários da Indústrias Reunidas Francisco
Matarazzo. A primeira camisa do time tem como símbolo a cruz de Savoia, em
homenagem à monarquia italiana.
Com
o tempo, a influência dos diretores do conglomerado Matarazzo faz com que o
clube atraia ítalo-brasileiros associados a outros clubes.
Cabe
lembrar que, em 1920, a aquisição do campo de futebol e do terreno do Parque
Antarctica somente é possível por meio de pesado investimento da própria
Companhia Matarazzo.
As
diferenças estão, portanto, expostas. O Corinthians é um clube de trabalhadores
diversos, não somente operários, com forte influência do movimento anarquista e
do pensamento de esquerda. É, por natureza, simpático à miscigenação
cultural.
O
Palestra Itália congrega operários e também figuras proeminentes da comunidade,
especialmente no segmento industrial. Há um viés conservador, especialmente no
grupo dirigente. A proposta é preservar identidades e estabelecer uma genuína
representação da comunidade italiana.
O
primeiro gol do Corinthians foi marcado por Luigi Salvatore Fabbi, italiano de
Parma, no campo do Bom Retiro, em partida contra o Estrela Polar, em Setembro de
1910. Em 1914, Fabbi transferiu-se para o Palestra Itália.
O
primeiro gol do Palestra Itália foi anotado em 1915, por Bianco Spartaco
Gambini, em jogo contra o Savoia. O jogador atuaria pelo clube por 17 anos. Cabe
lembrar que Bianco jogou pelo Corinthians em 1914. Foi campeão paulista. Como
capitão, foi o primeiro atleta a levantar a taça pelo alvinegro.
Ao
lado de Neco, Amilcar foi o grande destaque do Corinthians em seus primeiros
anos, pelo qual jogou de 1913 a 1923. Depois, também transferiu-se para o rival,
no qual fez 100 jogos, entre 1924 e 1930.
Parte
desse processo de migração se explica pelo golpe de 1915, quando o Corinthians
se desligou da Liga Paulista de Futebol para se filiar à Associação Paulista de
Esportes Atléticos. A liga da elite, entretanto, não inscreveu o clube dos
operários e o deixou de fora do torneio.
Neste
ano, portanto, o Corinthians ficou de fora dos dois torneios paulistas, o que
explica o reforço concedido ao Palestra. Cabe salientar que, na época, era comum
que um mesmo jogador defendesse duas ou mais equipes. Era o caso dos atletas do
Botafogo, que compunham a base do primeiro esquadrão corinthiano.
No
caso de Bianco, acredita-se que a transferência tenha origem no interesse da
família Gambini em participar de um clube exclusivo da colônia. A questão de
Amílcar está ligada, afirma-se, a problemas da família Barbuy com a direção
corinthiana da época.
De
fato, portanto, não há qualquer desmembramento no Corinthians que valide a
teoria de que uma dissidência direta criou o principal rival. Nos primeiros 20
anos de Corinthians, a presidência foi ocupada várias vezes por
ítalo-brasileiros, como Bataglia, Magnani, Giacominelli, Cassano, Tipaldi e
Collona.
É
certo, porém, que já ao final da segunda década do Século 20 gerou-se um clima
de antagonismo entre os dois clubes, alimentado também por visões de mundo
divergentes.
Se
muitos corinthianos participaram da greve anarquista de 1917 (vide eventos do
jogo contra o Ypiranga, em 22 de Julho daquele ano), há evidências de que o
Palestra seguiu rumo contrário, especialmente por contar com o apoio financeiro
das indústrias Matarazzo.
Com
o advento do fascismo, as diferenças de pensamento se tornaram mais claras. Para
muitos, Mussolini era a Itália, e a Itália no Brasil era representada pelo
Palestra.
Embora
não exista registro de baixas oficiais entre os associados alvinegros, não há
dúvida de que algumas famílias, originalmente simpáticas ao Corinthians,
acabaram aderindo à proposta do exclusivismo itálico.
Com
o passar do tempo, mantiveram-se as divergências de pensamento, enquanto crescia
a rivalidade nos gramados. Este, entretanto, tem por objetivo lançar luzes
apenas sobre os primórdios dessa disputa que vai muito além do futebol. O resto
rende um livro inteiro.