quinta-feira, 30 de abril de 2015

“O ódio na política vem de um modelo que começou a ruir”, diz professor da USP....... do DCM

Qual a origem do ódio deflagrado pelas manifestações reacionárias dos dias 15 de março e 12 de abril? Para o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker, esse ódio é produção do que ele chama de “crise dos condomínios no país”. Segundo Dunker, o conceito de condomínio que permeia a visão de realidade de parte dos brasileiros, com as eleições do ano passado, caminhou para o colapso. “O sentimento que se tinha é de que o Brasil era um grande condomínio, e ninguém iria eleger um síndico, ou deixar um síndico que ‘nós’, os que sempre mandaram no país, ‘não queremos’”, diz.
Com essa perspectiva, que associa ao momento político e às manifestações conservadoras, Dunker lançou na semana passada o livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma (editora Boitempo), em que analisa a realidade brasileira do ponto de vista da história de sofrimento no país e da expansão do pensamento neoliberal, que se apropria do condomínio, o espaço público, e segrega quem pode ou não ter acesso a esse espaço.
No livro, Dunker lança mão da psicanálise para analisar a questão política e social, mas não se limita a isso. O caráter multidisciplinar da obra inclui abordagem da história e sobretudo das ciências sociais brasileiras, que por meio de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre buscam dar contorno à produção de identidades no país.
Chamou a atenção o evento de lançamento do livro, programado para a sede da editora no bairro de Perdizes e acabou transferido para a quadra do Sindicato dos Bancários, no centro de São Paulo, tamanho o número de pessoas interessadas em acompanhar o debate de lançamento. “Foi um evento interessante, o momento pede uma resposta às manifestações e a esse agrupamento da direita no país. Acabou sendo um pretexto para todos se encontrarem.”
O que é a lógica do condomínio?
No livro, eu trato o condomínio como um sintoma do Brasil, no sentido de que é um fenômeno que tem uma aparição histórica muito precisa, nos anos 1970, justamente no momento em que o mundo assiste ao início dessa grande virada neoliberal, com Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Trata-se de uma mudança na maneira de produzir, mas também de entender o uso do espaço, e a configuração das leis que regem esse espaço. Então, o condomínio foi um sonho de consumo brasileiro, e torna-se um sintoma porque, no fundo, ele não é só um jeito de viver, uma forma de moradia. Olhamos para a vida ao modo de uma experiência que temos no condomínio.
E como se processa essa experiência?
Primeiro, você tem a produção de muros, que impedem que qualquer um entre. Então, o espaço que é comum dentro dos condomínios não é de fato espaço público. Ele é, digamos, um espaço que imita o público, é um espaço público postiço, onde é criado um conjunto de ilusões, de funcionalidade, de transparência, que capta o mito de uma vida resgatada, pura, uma vida onde a gente vai ter segurança plena, onde tudo vai estar no seu lugar.
Então, esse é um binômio inicial, quer dizer, você constrói muros para criar e purificar a sua experiência. Esses muros podem ser catracas, fichas de identificação, esses muros dizem quem é você, se você pode entrar e pode sair. Você começa a trabalhar com uma visão de mundo a partir de segregados e segregantes, quem é que você vai excluir para criar a sua forma de vida. E isso, certamente, é muito perigoso.
E como a vida intramuros se reproduz?
Depois de você construir muros e estabelecer o uso semipúblico do espaço, da coisa comum, vem mais um passo. Você começa a ter a gestão da sua vida na figura do síndico. Uma vida baseada na gestão, isso é o que temos acompanhando, que são os atravessamentos da experiência com o outro. E o modelo se espalha. É a gestão da saúde, da educação, é o gestor como aquele que não entende muito da atividade-fim, mas entende, vamos dizer assim, de como extrair algo a mais do processo de produção, ou do processo de consumo.
Então, nossa vida é primeiro dividida em muros, o que cria uma segregação, uma mutação no espaço público e em seguida vem a figura do síndico, que diz que esse é o jeito obrigatório de se viver. E aí temos os síndicos, que estão pululando pelo Brasil. São administradores da coisa pública que a tornam coisa semipública.
Podemos dizer então que os síndicos dão suporte ao neoliberalismo?
Esses são os caras que estão nos órgãos reguladores, é o cara essencial para produzir a terceirização, ele é aquele que pega as atividades que eram guarnecidas até os anos 1970, em educação, saúde e assistência social, e enfrenta isso como um negócio. O próximo passo da lógica de condomínio, baseada num sonho de harmonia e segregação, só que não é notada como segregação, se torna um pesadelo. Dentro dos condomínios surgem coisas incompreensíveis, como uma violência disruptiva, uma competição desmesurada entre vizinhos – o garoto está andando de bicicleta e raspa no carro do vizinho, aí o dono do carro vai lá e dá um chute na porta do carro do pai e diz que vai matar o garoto, algo desproporcional.
Mas aí o condomínio começa a se tornar também um espaço sem regras…
Em tese, é uma violência que já está meio latente ali nos laços. Quando alguém faz uma violação, e como aquele é um espaço formado a partir de uma extrema idealização do que sejam as relações humanas, qualquer violação é punida drasticamente, é pretexto da violência de um contra o outro. O alto consumo de álcool e de drogas, depressão, pânico, um sentimento exagerado de insegurança social, ou seja, tudo aquilo que você negou para construir o condomínio, volta pela porta dos fundos do condomínio. E, na realidade, você pode pensar isso como uma forma de vida que vai ter variações estruturais. O shopping center é uma forma de condomínio.
A prisão é outra forma de condomínio. A favela é uma terceira forma de condomínio. Você vai trocando os termos, vai mudando a conotação do que é o muro, o elemento segregador, quem é o síndico e chega em espaços que têm uma regra de existência semelhante ao condomínio. Seria então um sintoma que vai crescendo, que vai se tornando mais e mais central na nossa cultura dos anos 1970 até o nosso momento atual, que é uma espécie de crise dos condomínios. Então, você assiste à classe média reclamando que os condomínios estão ruindo, os muros não estão funcionando direito, precisa criar novos muros, novas figuras intrusivas, e assim por diante.
Quais são os indicadores de que hoje a lógica do condomínio está em crise?
Primeiro, vamos dizer assim, está em crise porque deu certo, ou seja, a ideia do condomínio se generalizou, se consolidou como uma forma de vida tão normalopática, tão esperada que ninguém mais percebe que isso é problemático. Nós não percebemos os custos que temos quando praticamos a segregação. Poderíamos chamar, assim, de um sintoma egosintônico, que se entranhou no ‘eu’ de tal maneira que a pessoa não consegue mais nem entrar em conflito com ele. Mas a lógica do condomínio tem a ver com um certo momento em que essa ideia de se apropriar do espaço público e criar uma lei de uso particular, prêt-à-porter, de consumo doméstico, vamos dizer assim, podia ser arbitrada segundo uma organização de autoridade vertical. O síndico é o sucessor, meio anacrônico, é verdade, do chefe, do pai, de quem representa a autoridade.
E quando esse sistema começa a ruir?
Entenda que o condomínio entra em crise quando essa autoridade se dispersa e começa a haver uma espécie de luta entre os condomínios, de ataque mútuo entre formas de vida, cada qual formada por pequenos grupos que se entendem como comunidades independentes. Você pode ver isso tanto do ponto de vista da religião, de consumo, entre outros. O choque, como diria Žižek (Slavoj Žižek, filósofo, crítico e cientista social esloveno), não é entre civilizações, mas é “intracivilizacional”. É assim que aparece essa ideia do ódio entre as pessoas, do ódio político, como depois da eleição de 2014, que foi válida. Enfim, um time perdeu, mas de repente isso é insuportável, e por quê?
Porque o sentimento que se tinha é de que o Brasil era um grande condomínio, e ninguém iria eleger um síndico, ou deixar um síndico que “nós”, aqueles que sempre mandaram no país, “não queremos”. Essa contrariedade produziu um choque com relação ao sentimento, seja ele falso ou verdadeiro, não importa, mas uma interpretação dos donos do poder, como dizia Raimundo Faoro, de que de repente tem algo que está fora do nosso condomínio. Isso coloca os condomínios em crise, mas eles ainda são a forma prevalente do nosso entendimento, tanto da produção quanto do consumo na nossa forma de vida.
A quem é destinado o livro?
Ele tem uma ambição de sair dos muros da psicanálise. Um dos capítulos busca, justamente, mostrar que a psicanálise, enquanto prática clínica, é uma coisa que se entranhou, foi bem recebida pela nossa cultura e depois disso se formou também como estrutura de condomínio dentro do nosso padrão brasileiro de lidar com a sociedade civil, espaço público etc.; então, o primeiro público obviamente seria o psicanalista, mas esse segmento talvez fique decepcionado com a maior parte do livro, pois ele se torna mais específico na última parte, porque até lá o que eu vou discutir é o Brasil.
Tem um capítulo sobre a formação do pensamento na brasilidade, passando por Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, chegando então nos pensadores desenvolvimentistas dos anos 1950, é um pouco assim uma história do Brasil do ponto de vista do nosso sofrimento. Você pode ter a história econômica, política, religiosa, e eu decidi fazer, num dos capítulos mais longos, sobre quais são as nossas formas de sofrimento, como a gente sofre, como sofreu e como está sofrendo hoje. É como colocar os condomínios em uma espécie de série histórica. E desse ponto de vista, o livro interessaria a um leitor também focado em teoria social, política, filosofia, semiótica, ciências humanas. Tenho recebido comentários de pessoal da arquitetura, urbanismo, gente que trabalha com política, ciência política e pessoas interessadas no Brasil, no nosso momento. O livro funciona para pensar essa virada do Brasil pós-reeleição da Dilma.
Então, podemos dizer que é um enfoque multidisciplinar?
Tem uma parte que discute bastante com a medicina, com o campo da saúde, da psicopatologia, vamos dizer assim, mas é uma discussão mais ou menos aberta sobre o que é a loucura, o que é o sintoma, e o que é essa categoria, que é clínica, mas também social, que é a noção de sofrimento.
O livro começa com um pequeno conto de uma pessoa que está num hospital, é o caso real do pai de um amigo que vai para um hospital e fica naquele processo sem-fim de exames, guias de internação, interna, não interna, verifica se pagou o convênio, vai aqui, vai lá, faz os processos, daí a hora em que chega o médico para passar o diagnóstico e pega todo aquele material esse senhor diz assim: “Não precisa falar nada, eu sei muito bem o que eu tenho, chama-se 87 anos”. Isso é uma entrada para o tema porque nós não precisamos associar o sofrimento nem com diagnósticos, nem com sintomas formalizáveis pela razão psicopatológica. O sofrimento, no fundo, é um tema político, tem a forma de sofrimento que merece atenção e tem a forma que merece ser silenciada. Como se produz esse processo? É uma discussão para quem tem interesse em Brasil, em política e também em psicopatologia.
Por que o sofrimento é político?
A ideia é que a realidade do que a gente sofre muda conforme a gente fala do nosso sofrimento. Se o outro chega e diz “pô, cara, isso aí que você está passando eu reconheço como uma dificuldade, como um sofrimento que tem dignidade”; a sua experiência real, de dor, de desprazer, de insatisfação, sua experiência no corpo, muda com o reconhecimento. Mas também há o momento em que o outro diz “eu não reconheço”. Por exemplo, o sofrimento de gênero. “Não reconheço que você tem direito a sofrer, porque você está sendo maltratado publicamente, porque isso aí não cabe na minha moral”. Então, aquela experiência inicial de sofrimento aumenta conforme ela é tratada pelos outros. E quem decide qual é o sofrimento que tem de ser tratado e qual não tem não deve ser o médico, nem o psicanalista, nem nenhum especialista isoladamente, mas o conjunto, quer dizer, a questão política, porque envolve todos. No fundo, nós já estamos fazendo isso, nós estamos discursivamente validando, invalidando, revalidando, desautorizando, construindo narrativas de sofrimento. Todo sofrimento se dá em uma história, em uma narrativa. O sofrimento não é a dor, a dor é uma sensação que você tem, o sofrimento é a história que você conta a partir disso.
Esse sofrimento de gênero, quando não tem o reconhecimento do outro, implica que o sujeito não se vê como detentor de um lugar no seio da sociedade…
Ou tem um reconhecimento patológico. É reconhecido como doença. Ou tem reconhecimento marcado por um determinada meta narrativa. Por exemplo, o sofrimento de gênero da mulher. Tem uma meta narrativa que diz “olha, o seu sofrimento, a dor da menstruação, a dor do parto, a natureza já previu, estabeleceu que você tem de sofrer, então, você não pode reclamar, aceita calada isso que está acontecendo com você”. Você tem nesse caso uma política construindo uma modalidade específica de reconhecimento e dizendo que o reconhecimento se dá de uma maneira e não de outra. Você também tem o sofrimento de gênero do homem, que diz que ele não pode chorar. Isso é uma outra ideia, de que o homem sofre calado, não pode se mostrar de outra maneira porque é sinal de vulnerabilidade. Ou o sofrimento dos homossexuais: “Você não pode sofrer, porque é uma escolha que você fez, é uma coisa que é contra a natureza, então, isso não pode estar associado com nenhum tipo de sofrimento porque é uma escolha sua”.
Tentando entender as razões das pessoas que participaram das manifestações contra a corrupção e o PT, em 15 de março e 12 de abril, dá para observar, nas entrevistas, que as pessoas adotam a livre associação para criticar a realidade. Constroem narrativas que unem informações e fatos espontaneamente, ao sabor do desejo ou do ódio que estão sentindo, mas deixam de lado qualquer critério lógico…
Mas por outro lado, você tem de ver que tem sempre uma certa parasitagem da ciência. Tem gente que vai dizer assim, “Você é de esquerda?! Então você tem um problema mental, você é um petralha, você tem uma forma de deficiência mental, você não consegue entender direito o mundo, tem um problema”. Ser de esquerda, nesse caso, significa que você não está às voltas com uma interpretação de mundo que produz certo desassossego, inquietação ou indignidade, mas você tem esse “sofrimento” a ser tratado no médico, e não em praça pública

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Marco Aurélio Carone: Dilma, solicite ao Itamaraty informações sobre a Carta de Intenções que Aécio assinou em Londres em 2004

Bush e Aécio
Em 2004, durante encontro com a elite financeira internacional em Londres,  o ex-presidente dos EUA, George Bush, afirmou: “Este será o próximo presidente do Brasil”, referindo-se a Aécio
por Marco Aurélio Carone, especial para o Viomundo
A história acontece primeiro como tragédia, depois se repete como farsa.
A frase acima é de Karl Marx na sua obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Referia-se à sucessão de dois Bonaparte à frente de governos de exceção na França. O primeiro, Napoleão, foi uma tragédia. O segundo, Luís, uma farsa.
O momento em que vivemos no Brasil nos obriga a refletir sobre o passado em busca de respostas para entender o presente.
É preciso remontar ao início do século XX. Nessa época, reinava absoluta a política “café com leite”, que vinha desde o governo Campos Sales (1898-1902), seguido por Rodrigues Alves (1902-1906) e Afonso Pena (1906-1909). Café com leite significava a alternância na presidência da República entre os políticos de São Paulo e de Minas Gerais.
A primeira quebra deste acordo ocorreu no quatriênio presidido pelo marechal Hermes da Fonseca (1910-1914),  embora alguns historiadores afirmem o contrário. O movimento denominado Civilista decidiu defender a candidatura de um civil em oposição à de um militar, o Marechal Hermes da Fonseca, candidato apoiado pelo então presidente da República.
O intelectual Rui Barbosa foi o escolhido pelos civilistas para disputar o cargo. Ele percorreu o Brasil, realizando discursos e comícios, em busca de apoio popular, fato até então inédito na vida republicana brasileira. Foi a primeira campanha presidencial moderna realizada no país. Mesmo assim, Hermes da Fonseca foi eleito presidente.
O período de 1918-1922 seria do paulista Rodrigues Alves, mas, devido à sua morte, foi ocupado, excepcionalmente, pelo paraibano Epitácio Pessoa.
A política “café com leite” gerava, claro, descontentamento entre as oligarquias dos demais estados, provocando eventos como a chamada Reação Republicana, surgida em 1922, quando da sucessão de Epitácio Pessoa.
A Reação Republicana era formada pelos estados de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Ela ocorreu em resposta ao veto feito pelo governador Borges de Medeiros, do Rio Grande do Sul, à candidatura de Artur Bernardes.
Para o dirigente gaúcho, a candidatura de Bernardes, significava a garantia da valorização do café, “quando a nação carecia de equilibrar todo o seu sistema financeiro”.  Atentem ao o que as oligarquias já alegavam em 1922.
A Reação Republicana apresentou como candidatos a presidente e a vice-presidente da República, respectivamente, Nilo Peçanha, do estado do Rio de Janeiro, e J.J. Seabra, da Bahia.
A insatisfação referida por Borges de Medeiros fez brotar entre setores outros da sociedade, principalmente nos mais jovens, a convicção da necessidade imperiosa de total e completa reformulação na conduta política, fazendo-a condizente com os processos de governo efetivamente democrático.
Como acontece agora, a crise financeira mundial de 1929 atingiu em cheio a economia do Brasil, muito dependente das exportações de um produto, o café. Mais do que gerar dificuldades econômicas, o crash, que completa 86 anos, provocou uma mudança no foco de poder no país, acabando com a política “café com leite”. Um pacto político interno que já durava mais de trinta anos.
A crise arruinou a oligarquia cafeeira, que já sofria pressões e contestações dos diferentes grupos urbanos e das oligarquias dissidentes de outros Estados, que almejavam o controle político do Brasil.
Aproveitando a crise internacional que fragilizara a economia do País e diante do rompimento pelos paulistas da tradicional política “café com leite”, os políticos mineiros resolveram reativar a Reação Republicana e o foco do poder no país foi deslocado para o gaúcho Getúlio Vargas, que se tornou presidente da República após o golpe de 1930.
Do ponto de vista político e das elites, a crise foi importante porque desviou o foco do poder para Getúlio Vargas e para um projeto de industrialização.
O golpe de Estado, denominado pelos historiadores de “Revolução de 1930”, e o papel desempenhado por políticos de então inspiram os que hoje tentam derrubar a presidenta Dilma Rousseff.
Naquela época, os perdedores da eleição presidencial arguiram ilegitimidade do pleito, embora fossem os autores da legislação e regras eleitorais. E, aproveitando-se da crise econômica e das divergências políticas regionais, derrubaram o presidente eleito.
Esse movimento levou o País a uma ditadura selvagem de 15 anos. Os motivos alegados para o golpe era o de estabelecer uma nova ordem constitucional. Porém, ocorreu o  contrário. Vieram a dissolução do Congresso Nacional e a intervenção federal nos governos estaduais, dando início à denominada “Era Vargas”.
A deposição de Getúlio Vargas e o término do “Estado Novo” só ocorreram em 1945, com a posterior redemocratização do país e adoção de uma nova Constituição em 1946, marcando em definitivo o fim da “Era Vargas”. Teve início, então, o período conhecido como “Quarta República Brasileira”.
Saltando para os dias atuais. É inegável a existência de uma crise de representatividade. Ela demonstra que o modelo de Democracia Representativa esgotou-se e deve ser aprimorado com a introdução gradual da Democracia Participativa, modelo que as atuais lideranças políticas fogem como o diabo foge da cruz.
Uma das razões pelas quais a presidenta Dilma está sendo ferozmente combatida é justamente porque deu início a essas mudanças, propondo a adoção do Plebiscito e Referendo, institutos da Democracia Participativa.
As eleições de Eduardo Cunha, para a presidência da Câmara dos Deputados, e a de Renan Calheiros, para comandar o Senado, demonstram claramente o medo dos parlamentares dessa transformação.
É inegável que a crise de representação não está no Executivo, e sim no Legislativo,  embora a mídia insista em afirmar o contrário. Todas as medidas encaminhadas pela presidente Dilma ao Congresso têm sido rejeitadas, numa clara atitude de quanto pior melhor.
Aproveitando-se do receio de seus colegas congressistas, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) busca a repetição do golpe de 1930. Ele tenta se colocar como principal ator, representando o empoeirado roteiro.
Só que existe um detalhe. Aécio não tem liderança nem o necessário conhecimento e vivência politica para exercer tal posição por ser fruto de milionárias campanhas publicitárias.
Sua liderança existe apenas nos noticiários de jornais, rádios e TV, pois não tem sequer território político. Ele só nasceu em Minas. Foi criado no Rio de Janeiro. E mesmo como governador,  ele morou na cidade do Rio de Janeiro.
Aécio conhece o Estado de Minas Gerais apenas por cima, quando de avião dirige-se a Brasília. Procedimento idêntico tomou toda sua equipe de governo e família, após as eleições de 2014.
Aécio tornou-se um bufão, adotando técnicas semelhantes às do excelente apresentador Sílvio Santos no quadro: “Quem quer dinheiro”. Evidente que seu auditório composto pela grande imprensa o aplaude na espera dos “aviõezinhos”.
A sua atitude pode parecer inocente, mas infelizmente não é. O bufão não sabe o que está fazendo, mas seus patrocinadores sabem. Eles querem conseguir audiência e apoio popular para atingir seus interesses nas águas turvas.
O senador precisa saber que perdeu a última eleição para ele mesmo, foi derrotado no Estado que ditatorialmente governou.
Quem conhece a política mineira sabe que a origem de Aécio está intimamente ligada à defesa e à representação do capital financeiro internacional.
Isso desde os anos 30, quando seu avô Tancredo Neves era extremamente próximo ao  americano  Percival Farquhar, que ocupou a presidência da Itabira Iron Ore Company. Na época, era dono do que hoje é conhecido como Cia Vale do Rio Doce.
Com a saída de cena de Farquhar — devido à nacionalização do setor de mineração para cumprir um acordo de fornecimento de minério aos EUA durante a Segunda Guerra e à fundação em junho de 1942 da Vale do Rio Doce — os interesses multinacionais até então representados no País por Percival foram transferidos para Moreira Salles, banqueiro igualmente próximo de Tancredo.
Posteriormente, no Governo de Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1958, Tancredo ocupou a Carteira de Redescontos do Banco do Brasil, implantando os alicerces do Banco Central. Uma antiga exigência do capital internacional, que lhe foi demandada quando era ministro da Justiça no governo de Getúlio Vargas (de 26 de junho de 1953 a 24 de agosto de 1954, quando o presidente se suicidou).
A presidenta Dilma ocupa legitimamente a Presidência da República, pois foi eleita pelo voto popular para o mais alto cargo político do País.
Só que, no meu entender, ela necessita identificar com quem e a serviço de quais interesses a classe política nacional articula.
A presidenta precisa entender — e só ela, pois grande parte dos integrantes do seu governo oriundos de outras siglas partidárias já entende —  que lidar com o mundo político é o mesmo que participar de um baile de máscaras, onde a fisionomia não identifica quem a usa. Muito menos sua “alma”.
Infelizmente, para a esquerda e felizmente para a direita, os primeiros sempre imaginam ser capazes de cooptar os segundos, enquanto os segundos só lidam com os primeiros já cooptados.
Nesse contexto, gostaria de dar uma sugestão: Presidenta Dilma, solicite ao Itamaraty informações sobre a existência de uma autorização legislativa ou dispositivo constitucional para que o então governador de Minas Gerais, Aécio Neves, celebrasse uma “Carta de Intenções”, durante encontro com a elite financeira internacional na Spencer House, em Londres. A carta foi  assinada em 16 de maio de 2004.
Na ocasião, portanto dez anos atrás, George Bush, ex-presidente do EUA, afirmou: “Este será o próximo presidente do Brasil”, referindo-se a Aécio.
Seria igualmente importante que o Senado solicitasse cópia dessa mesma carta, pois um de seus membros, na condição de Governador do Estado, talvez tenha cometido um crime de lesa-pátria.
Crime de lesa-pátria é qualquer aliança política, traiçoeira, que cause prejuízos ao País, acabando com a Democracia, Soberania e Liberdade de seu povo. Assim como, desviando fraudulentamente recursos dos cofres públicos, impondo regime autoritário fundamentado na esquerda ou direita, radical ou não, aparelhando o Estado e subjugando e enganando o povo em busca de poder.
Nos anos 30, o ocorrido foi uma tragédia. Sua repetição agora será uma farsa.
Marco Aurélio Carone é ex-presidente do Jornal de Minas e do Diário de Minas. É o responsável pelo site mineiro Novojornal, retirado duas vezes do ar por decisão judicial. Preso sem qualquer condenação por 10 meses em penitenciária de segurança máxima sob a alegação de garantia da ordem pública. Só que, verdade, a prisão foi para evitar que suas matérias interferissem nas eleições presidenciais de 2014.

Amável Donzela, Caridade… Os nomes dos navios negreiros e o cinismo dos vendedores de escravos


escravos
Publicado no Medium.
Não há páginas da história da escravidão que não nos envergonhem.
Esta, talvez ainda pouco abordada, trata dos dissimulados nomes que os donos das embarcações davam as seus infernos flutuantes, os navios negreiros — ou navios “tumbeiros”, que vem de tumba, sinônimo de caixão.
As histórias desses barcos de nomes revoltantes estão expostas no mais amplo estudo do comércio transatlântico de seres humanos, iniciado ainda na década de 1960, e reunido pela Universidade de Emory (EUA), no site slavevoyages.org. É partir desta pesquisa que reunimos aqui uma lista com alguns dos mais nojentos nomes encontrados.
Wilson Prudente é relator da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB do Rio de Janeiro e um dos brasileiros descendentes de escravos mais engajados em recuperar a história do povo de seus antepassados africanos. Ele garante que os abjetos nomes desses barcos não eram por acaso: “Eram para intimidar.”
Daniel Domingues da Silva faz parte da equipe responsável pela pesquisa. Ele garante que a escolha dos nomes era feita pelo dono do barco — nunca por seu capitão. Daniel, no entanto, ressalta que havia, entre muitos comerciantes de escravos, uma crença doentia de que eles estavam fazendo “um bem para os escravos”.
— Eles pensavam que estavam ajudando a resgatar a alma dos africanos para o reino de Deus, ou seja, trazendo eles de uma terra onde o paganismo imperava para a cristandade.
>>>Clicando no nome dos barcos, você acessa o link da pesquisa no site slavevoyages.org. Lá, você pode cruzar a pesquisa com outras variáveis.<<<

1. Amável Donzela

(1788 a 1806)

Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.838
Escravos mortos durante a viagem: 298
Escravos desembarcados no Brasil: 3.540
Tripulação (média) = 31
Foi no dia 2 de outubro de 1788 que o capitão José de Azevedo Santos e mais 33 tripulantes deixaram Portugal para inaugurar uma lamentável história a bordo da galera Amável Donzela. Nos 7 anos seguintes, o barco realizou 7 viagens assassinas, sempre traçando o mesmo caminho de horror: de Lisboa para o porto de Cacheu, no centro-oeste africano, e de lá, entupido de seres humanos acorrentados, para o Maranhão, no Brasil.
À época, Cacheu era uma pequena cidade que se formava em volta do movimentado porto da primeira colônia fundada pelos portugueses na região, onde hoje é Guiné-Bissau, a Guiné Portuguesa. Desde 1675, havia em Cacheu um intenso comércio escravagista, demérito do principal fomentor do setor por ali, a Companhia de Cacheu.
Os escravos eram subjulgados em uma região um pouco mais ao norte, na Senegâmbia (hoje: Senegal e Gâmbia). Não era fácil vencer os escravos na Senegâmbia, região com alto índice de muçulmanos. O historiador Daniel Domingues da Silva, um dos responsáveis pelo estudo, aponta que a rejeição à escravidão em áreas muçulmanas era muito mais violenta do que em outras partes da África.
No Brasil, o destino dos homens, mulheres e crianças desta região era o Maranhão, onde serviriam como mão de obra para a cadeia do algodão, que vigorou no norte do Brasil. A produção era exportada principalmente para a Grã-Bretanha, em pleno desenvolvimento industrial.
É claro que ninguém tinha direito a um enterro. Para evitar contaminação no barco, o que significaria perda de mais mercadoria, os corpos eram jogados no mar. Wilson Prudente garante que, muito adoentados, alguns escravos eram amarrados a pedras e lançados ao fundo do oceano ainda vivos.
Entre 1792 a 1796, o capitão Joaquim Adrião Rosendo, que boa pessoa não deveria ser, liderou a Amável Donzela. Passava quase metade do ano no trajeto Europa — África — Américas. Foi o fim da primeira era do barco, que só voltaria ao comércio negreiro em 1804, ainda mais cruel e assassino, já com outro itinerário.
Em vez de passar em Cacheu para pegar escravizados da Senegâmbia, o caminho da Amável Donzela agora seguia para Benguela e Luanda, em Angola, ainda mais abarrotados — desta vez com humanos do Centro-Oeste da África, área mais profundamente dominada pelos portugueses em toda a costa atlântica da África à época. A política escravagista portuguesa na região, especialmente em Luanda, deu-se por uma complexa parceria com o reino do Congo, que esfacelou o reino do N’dongo a partir do século 16. Presos, hereges, adúlteros, segundo o historiador Daniel Domingues da Silva, já eram escravizados na região ainda antes da chegada dos portugueses.
Toda essa história, certamente, facilitou o trabalho assassino da Amável Donzela em 1804 e 1805, em direção ao Rio, e em 1806, em direção ao porto de Pernambuco. Começava, justamente nesta época, justamente neste trajeto Angola — Brasil, o maior boom escravagista de toda história do Atlântico. Apenas nessas três últimas viagens do barco, 1.704 seres humanos foram acorrentados e embarcados a força para a América.
Da África a América, a Amável Donzela agora era mais lenta. Em vez dos 30 dias médios da década passada, a viagem passou para cerca de 55 dias. Mais tempo de horror e morte dentro do barco. Só nestas últimas três travessias, 170 morreram, 10% dos embarcados.

2. Boa Intenção

(1798 a 1802)

Bandeira: Portugal
Rota: Angola — Brasil
Tipo de embarcação: galera
Travessias realizadas: 2
Escravos transportados: 845
Escravos mortos durante a viagem: 76
Escravos desembarcados no Brasil: 769
Tempo de travessia África/América (média): 51 dias
1798 foi um ano marcante na história da escravidão brasileira. Na Bahia, a Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, não tinha a reivindicação abolicionista como prioridade, mas sim a independência brasileira (e baiana) de Portugal. De qualquer modo, a presença de alguns escravos (especialmente os mulatos, já brasileiros) na mobilização revestiu a luta de um caráter popular.
Os agitadores principais foram duramente punidos pelo governo colonial brasileiro/português. Líderes foram executados em praça pública. Muitos escravos foram açoitados no Pelourinho.
Outra condenação levou o escravo alfaiate Cosme Damião Pereira Bastos a se tornar um dos poucos descendentes de africanos que vieram ao Brasil e retornaram ao continente natal de sua família. É claro que ele não foi a passeio, encontrar a raiz dividida. Preso, torturado, foi condenado a dez anos de degredo numa prisão de Benguela, em Angola.
Talvez Cosme Damião tenha cruzado no caminho com mais um barco negreiro de nome safado, a galera Boa Intenção, que em setembro de 1798 deixou Luanda e, durante 42 dias, fez uma viagem infernal até a cidade de Rio de Janeiro, já capital da Colônia.
O capitão do barco Marcos Guimarães Costa deu seu inescrupuloso assento para Anacleto Ferreira Vasconcelos, que conduziu a segunda viagem da Boa Intenção ao Rio de Janeiro, de janeiro a março de 1802. Foi uma jornada brutal. Primeiro embarcou escravos em Benguela. Depois, provavelmente já superlotado, embarcou mais escravos em Luanda.
Em 60 dias de um longo martírio que não se encerraria na chegada, 43 africanos morreram e foram atirados ao mar. Só em 1802, a estimativa é que 88.814 escravos tenham desembarcado no Brasil, a maioria mercadoria de barcos ingleses. É o nono ano mais lamentável do comércio escravista brasileiro.

3. Brinquedo dos Meninos

(1800 a 1826)

Bandeira: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 11
Escravos transportados: 3.179
Escravos mortos durante a viagem: 220
Escravos desembarcados no Brasil: 2.959
Tempo de travessia África/América (média): 70 dias
Destino de todas as viagens: Bahia
O barco tinha fácil entrada em diversos portos africanos. Em 1800, a viagem começou em Costa da Mina, uma intensa região que hoje abrigaria países como Nigéria, Gana e Benim. Comerciantes de Salvador tinham íntima relação profissional com os traficantes da Costa da Mina, tanto que Lisboa, por vezes, teve que interferir nesse comércio direto para evitar perda de arrecadação de impostos.
Em 1801, a partida do Brinquedo dos Meninos deu-se em São Tomé e Príncipe. Já em 1805, com 390 escravos a bordo, saiu de Whydah — hoje, Benim. No ano seguinte, a viagem partiu de Badagry, na costa da Nigéria. O barco retornou a Costa da Mina em 1808, 1810 e 1812, antes de interromper os trabalhos para o Brasil por um período de dez anos. Em 1822, 1825 e 1826 o barco negreiro foi comprar seres humanos em Cabinda, onde hoje se dá uma intensa luta separatista de Angola, ao norte deste país africano.

4. Caridade

Quatro diferentes embarcações sob esse nome(1799 a 1836)

Bandeiras: Portugal e espanhola
Tipo de embarcação: bergatim, escuna, sumaca e galeota
Travessias realizadas: 20
Escravos transportados: 6.263
Escravos mortos durante a viagem: 392
Escravos desembarcados no Brasil: 5.871
Tempo de travessia África/América (média): 50 dias
Pelo menos quatro embarcações transportaram escravos sob o irônico nome de Caridade. Somadas, elas carregaram o incrível número de 6.263 pessoas e, claro, não fizeram caridade para nenhuma delas. Ao contrário: 392 pessoas morreram nesses barcos. Na primeira década dos serviços de mortes e sequestros, o barco tinha destino o Rio de Janeiro, ora recolhendo africanos em Benguela, ora em São Tomé.
Em 1815, uma galeota chamada Caridade despejou em Pernambuco apenas 301 dos 345 negros que embarcaram no barco. De 1819 a 1836, foi uma escuna que exibiu vergonhosamente o nome de Caridade pelos ventos do Atlântico, deixando a região do Benin em direção a Bahia, rota muito frequente ao longo dos séculos.
A única embarcação Caridade que navegou com bandeira espanhola também mostrou toda a crueldade que o nome “escondia”, em 1833. Deixando Bonny, no extremo sudeste de onde hoje é a Nigéria, o barco foi capturado pelos britânicos no trajeto ao Brasil.

5. Feliz Destino

(1818 a 1821)

Bandeira: Portugal
Tipo de embarcação: bergatim
Travessias realizadas: 3
Escravos transportados: 1.139
Escravos mortos durante a viagem: 104
Escravos desembarcados no Brasil: 1.035
Todas as viagens com destino ao nordeste brasileiro
No estudo da slavevoyage, não há exatidão do porto de destino de todos os barcos que vinham ao Brasil. Muitos recebem registro apenas de uma grande região, mas não seus portos específicos. É o caso de mais um bergatim de nome canalha, o Feliz Destino. Todas as três viagens do barco, recheada de crimes contra a humanidade, estão registradas para desembarcar em Pernambuco, mas isso pode significar outros portos do nordeste brasileiro, como Maceió, Paraíba, sem contar os próprios portos pernambucanos de Recife, Porto de Galinhas e Maria Farinha (a 20km do Recife).
Por suas belezas, bem que o viajante que chegava a essas terras poderia considerar o destino um feliz destino. Não os escravos, é claro. Esses iriam trabalhar sob regime de prisão e tortura, em especial, nos engenhos de açúcar.
O comércio de seres humanos para Pernambuco não foi tão largamente documentado como para Rio de Janeiro e Salvador, mas, o estudo da Universidade de Emory, coloca o porto do Recife como o quinto mais movimentado de todo o mundo no quesito desembarque de escravos.
Como ocorreu com o Feliz Destino, 87,2% dos casos das viagens com destino a Pernambuco também tiveram Pernambuco com o porto de origem da viagem, segundo o estudo Financiamento e Organização do Tráfico de Escravos para Pernambuco no Século XIX (Albuquerque, Versiani e Vergolino). Isso indica que os líderes do comércio de seres humanos na região já eram residentes do nordeste brasileiros — na maioria, portugueses.
De todas as viagens do bergatim Feliz Destino, a mais mortal foi a de 1821, conduzida pelo capitão Prudêncio Vital de Lemos.

6. Feliz Dias a Pobrezinhos

(1812)

Bandeiras: Portugal/BrasilTipo de embarcação: bergatimTravessia realizada: 1Duração da viagem: 94 diasEscravos transportados: 355Escravos mortos durante a viagem: 120Escravos desembarcados no Brasil: 235Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 33,8%
Se houvesse um carinho especial pela história dos africanos no Brasil, certamente, estudaríamos na escola a desgraçada saga do bergatim Feliz Dias a Pobrezinhos, que, além de matar 120 pessoas em sua única viagem, carregou consigo esse nome asqueroso.
Em 17 de dezembro de 1811, o barco deixou a África com 355 negros escravizados. Ao contrário da maioria dos seres humanos enviados para o Rio de Janeiro, o Feliz Dias a Pobrezinhos havia carregado seu porão com mercadoria viva na costa africana voltada para o Oceano Índico — e não no Atlântico. Do porto de Moçambique, saíram escravos colhidos no interior do sul da África, como Zambêzia.
Alguns desses escravos partiam para o Brasil já eram escravos de uma primeira migração forçada, já que os portugueses importavam para Moçambique africanos de ilhas como Madagascar, Ilhas Seychelles e do arquipélago de Comores, todos no Oceano Índico, para depois revendê-los ao Brasil. Não há como ter certeza de onde saíram os pobrezinhos que, em vez de felizes dias, tiveram 94 dias de terror no mar.
É bem possível que muitos outros dos 235 que resistiram a tanta tortura não sobreviveram nem mesmo os primeiros dias de Brasil. Não sabemos, por enquanto. Se houvesse um carinho especial pela história dos africanos no Brasil, talvez já soubéssemos.

7. Graciosa Vingativa

(1840 a 1845)

Bandeiras: Portugal/Brasil
Tipo de embarcação: Iate a vela
Travessias realizadas: 10
Tempo da travessia (média): 30 dias
Escravos transportados:1.257
Escravos mortos durante a viagem: 125
Escravos desembarcados no Brasil: 1.132
Porcentagem de escravos mortos durante a viagem: 10%
Já não era uma tarefa simples traficar escravos no período do segundo império brasileiro. Após o fim da escravidão no Haiti (1791), a proibição do comércio para os Estados Unidos (1808) e a abolição da escravidão nos territórios britânicos (1833), o cerco para terminar com a horrorosa prática escravista também se fechava no Brasil.
Embora o texto da Lei Feijó vetasse o desembarque de escravos do Brasil a partir 1831, a lei não teve eficácia, não pegou. Assim, na década de 1840, quando a Graciosa Vingativa, sem nenhuma graça, espalhava morte e tortura no Atlântico, a região mais perigosa da viagem não era a costa brasileira e, sim, a africana.
Era necessário, então, apostar em embarcações mais ligeiras, capazes de fugir de barcos estrangeiros. Não que a intenção de todas as forças estrangeiros fosse humanitária. Muitas vezes, a perseguição a navios negreiros se dava por disputa econômica mesmo.
O certo é que o iate a vela que levava o canalha nome de Graciosa Vingativa era muito veloz. Tanto que, em 1844, conseguiu fazer três viagens de ida e volta ao Brasil-Nigéria. Em janeiro, deixou Salvador e chegou a Lagos. Voltou a Salvador com 111 escravos subjulgados na região do Benim. Em março, o barco deixou novamente a Bahia e foi até Lagos, voltou em junho com mais 144 negros cativos. Repetiu o percurso em setembro, com mais 133 presos a bordo. Ao total, seis pernas de cerca de 30 dias cada. Um horror!
Conta o historiador Dale Graden que os carpinteiros baianos tornaram-se conhecidos por sua habilidade em reparar navios de madeira e “prepará-los/ adaptá-los” para viagens escravagistas, numa forma de escapar da vigilância estrangeira. Aliás, também vale lembrar que não havia navios construídos especialmente para acomodar tantas pessoas na travessia. As embarcações eram, na verdade, barcos mercantes.
Graciosa Vingativa, ao total, foi responsável pelo transporte de 1.257 escravos africanos. 125, 10% deles, não resistiram e morreram no caminho.

8. Regeneradora

Três embarcações sob esse nome (1823 a 1825)

Bandeiras: Portugal/BrasilTipo de embarcação: escuna, brigue e corvetaTravessias realizadas: 7Tempo da travessia (média): 30 diasEscravos transportados: 1.959Escravos mortos durante a viagem: 159Escravos desembarcados no Brasil: 1.800
Das sete viagens, quatro estão registradas sob comando de Bento José Francisco Fortes, o que pode indicar que ele trocava de barco, mas mantinha seu registro de nome mentiroso. Pesquisas a história de Bento José indicam que ele era também um comerciante de farinha, feijão e fumo para o sul do país. Em três anos, foram oito pernas Atlânticas para o capitão, que, só sob seu comando, foi responsável por arrancar 1.036 pessoas de sua terra natal para servir a outros na América. Um canalha!
Nas primeiras duas viagens das Regeneradoras, o roteiro era de ida e volta: Pernambuco — Luanda — Pernambuco. A partir da terceira viagem, a segunda do capitão Bento José, o tour aumentou: Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, despejando seres humanos ao longo da costa do Brasil recém independente, como os chineses fazem com seus brinquedinhos, hoje, na Nova República.
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