quinta-feira, 26 de junho de 2014

KOTSCHO: "MAIOR LEGADO DA COPA É A FORÇA DO POVO"

Texto Maravilhoso .................difícil

RUBEM ALVES 

Doutor, será que saio dessa?
Estou remando a canoa rumo à terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades 

DOUTOR, AGORA que estamos sozinhos quero lhe fazer uma pergunta: "Será que eu escapo dessa?" Mas, por favor, não responda agora; sei o que o senhor vai dizer. O senhor vai dizer: "Estamos fazendo tudo o que é possível para que você viva". Mas não me interessa nem o que o senhor está fazendo nem o que todos os médicos do mundo estão fazendo. Sou uma pessoa inteligente. Sei a resposta. Sei que vou morrer.
Morrer é difícil. Há a dor da morte e a dor das mentiras. Meus parentes, quando lhes sugiro o tema da morte, logo o evitam: "Tira essa idéia de morte da cabeça. Logo você estará andando de novo..." Tentam enganar-me, por amor. Fico então numa grande solidão. Não há ninguém com quem eu possa conversar honestamente.
As visitas vêm, assentam-se, comentam as coisas do cotidiano. Eu também sorrio delicadamente. É estranho que uma pessoa que está morrendo tenha a obrigação social de ser delicada com as visitas. As coisas sobre que falam não me interessam. Eu estou muito longe remando minha canoa no grande rio, rumo à terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades. Os religiosos não me ajudam. Pretendem saber coisas do outro mundo. Mas o outro mundo não é problema para mim. Se Deus existe, então Deus, que é amor, cuidará dele. Se Deus não existe, então não há porque me preocupar com o outro mundo porque nada me faltará se eu mesmo faltar. Ah! Como seria bom se as pessoas que me amam me lessem poemas ou ouvissem comigo as músicas que amo. Para mim a beleza é o rosto sensível de Deus.
A proximidade da morte trouxe-me lucidez aos meus sentimentos. Tristeza, é isso que enche a minha alma. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero partir...
Doutor, sua missão é lutar contra a morte. Mas a última batalha é sempre perdida. Sei que nas escolas de medicina se ensina sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a morte como uma experiência humana? O morrer humano não pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas a morte de uma pessoa é um evento único. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar.
Os remédios que o senhor receita são inúteis. O senhor sabe disso. São ilusões para manter acesa a esperança. Mas há um momento da vida em que é preciso perder a esperança. Abandonada a esperança, a luta cessa e vem então a paz.
Mas há algo que os seus remédios podem fazer. Não quero morrer com dor. Nesse ponto para isso serve a ciência: para me tirar a dor. Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem o doente. Preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso eles transformam o fim harmonioso da melodia que é a vida num acorde de gritos desafinados. Somos humanos na medida em que brilha em nós a esperança da alegria. Quando a possibilidade de alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Esse é o meu último pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz...
E agora, doutor, me responda: "Será que eu saio dessa?". Ficarei feliz se o senhor não me der aquela resposta boba, mas se assentar ao lado da minha cama e me disser: "Você está com medo de morrer. Eu também tenho medo de morrer...". Então conversaremos sobre o medo que mora em nós dois que vamos morrer...

A atual tragédia do Iraque é fruto de um acordo entre um coronel inglês e um cônsul francês há 100 anos


Soldados do EIIL
Soldados do EIIL
Publicado originalmente na DW.


Um coronel britânico e um cônsul-geral francês são os responsáveis pela dramática situação no atual Iraque: Mark Sykes e François Georges-Picot desenvolveram em 1916 o documento secreto que leva seu nome. No Acordo Sykes-Picot, eles regulavam a partilha dos territórios do “antigo” Império Otomano, sem que a população local tivesse conhecimento.
O detalhe picante é que àquela altura o Império Otomano ainda existia. Seus últimos califas – líderes políticos e espirituais em uma só pessoa – foram os sultões Mehmet 5° (1909-1918) e Mehmet 6° (1918-1922). Politicamente, o califado otomano terminou em novembro de 1922, com a fundação da República da Turquia por Kemal Atatürk. O califado espiritual dos otomanos perdurou até março de 1924, quando, por iniciativa de Atatürk, uma lei foi aboliu o Parlamento turco.

Fronteiras com cálculo político

As duas principais potências militares da época, Reino Unido e França, tinham grande interesse na região entre o Mar Mediterrâneo e o Golfo Pérsico. Em Londres, já no início do século 20 os responsáveis haviam reconhecido a importância que poderia ter o acesso às fontes de extração de petróleo. Além disso, a região se localizava bem no caminho da principal colônia dos britânicos, a Índia.
O governo em Paris, por sua vez, possuía uma longa história de relações comerciais com os grandes portos da costa do Mediterrâneo, como Beirute, Sídon e Tiro, as quais queria assegurar por meio do Acordo Sykes-Picot.
Para as grandes potências, o destino dos habitantes dessas regiões não importava: o britânico Sykes marcou a fronteira entre as duas áreas de protetorado à mão livre, com uma caneta: de Kirkuk, no atual Iraque, atravessando quase mil quilômetros até Haifa.
“A forma artificial como os Estados foram constituídos foi responsável por diversos conflitos nas últimas décadas”, afirma Henner Fürtig, vice-presidente do Instituto de Estudos Globais e Regionais (Giga) e diretor do Instituto Giga de Estudos do Oriente Médio, em Hamburgo. “Essas questões continuam sem solução por mais de um século e vêm à tona de forma cíclica, como agora no caso do avanço do EIIL no norte do Iraque.”

Compreensão histórica distorcida

Até hoje, a população de praticamente todos os Estados da região é composta por uma variedade etnias e religiões. É justamente aí que o grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) impõe sua exigência de uma teocracia pan-islâmica na forma de um grande califado. Segundo Fürtig, o próprio nome do grupo já indica que os extremistas tentam desfazer a marcação de fronteiras que consideram ocidental-imperialista.
Os extremistas do EIIL situam nos últimos 400 anos do domínio otomano o auge da forma de governo que agora almejam. O que eles deixam de lado é que, para os árabes, esse foi na verdade um período de dominação estrangeira pelo califado otomano. Mesmo assim, eles veem no califado a forma natural de Estado para os muçulmanos devotos, observa Henner Fürtig. “Não estou falando de viabilidade, mas sim do que é divulgado pela propaganda, em parte, com muito sucesso.”
Diante do avanço dos combatentes do EIIL no Iraque, observadores advertem repetidamente quanto a um desmantelamento da ordem política no país. Henner Fürtig considera a situação para próprio o Iraque menos dramática, comparada com a dos países vizinhos, igualmente marcados por uma mistura de etnias e religiões: “As consequências de um colapso estatal seriam devastadoras para a Turquia ou o Irã. Ninguém quer isso.”
Além disso, lembra o diretor do Instituto Giga para o Oriente Médio, o Iraque, enquanto Estado, já tem experiência com grandes crises: “A guerra civil no Iraque em 2006 foi pelo menos tão grave quanto agora. Na época, registraram-se 34 mil civis mortos em um ano – mesmo assim, o Estado se manteve coeso, de fato.”

quarta-feira, 25 de junho de 2014

O Analfabeto Midiático

 
POR CELSO VICENZI
 
O pior analfabeto é o analfabeto midiático.
Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos. Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.
Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”
O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.
Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
O analfabeto político
O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht

terça-feira, 24 de junho de 2014

“Onde está a aluna marxista?” — a briga entre um professor e uma estudante na UERJ- INACREDITÁVEL

O texto abaixo foi publicado no jornal ggn
Maria Clara
Maria Clara
Maria Clara Bubna, 20 anos, é estudante do 1° período de Direito na UERJ e integra o Coletivo de Mulheres da sua Universidade.
Ela era – até ele pedir exoneração – aluna do Professor Bernardo Santoro, autor de uma postagem de conteúdo debochado e pra lá de machista feita, publicamente, em seu facebook, e repudiado, recentemente, e com toda a razão, pelo Coletivos de Mulheres da UFRJ, outra Universidade na qual Bernardo leciona.
Depois disso, Bubna diz que passou a ser perseguida pelo professor. Ele afirma o contrário, mesmo estando hierarquicamente, acima da aluna, em sua relação dento da Universidade, e atribui a autoria do repúdio à Bubna e seu Coletivo, embora a Nota de Repúdio tenha sido publicada por outro Coletivo Feminista, de outra Universidade, a UFRJ.
A estudante ficou um tanto surpresa e assustada com o rumo que o assunto tomou e a repercussão que teve, mas resolveu quebrar seu silêncio e contar sua versão da história em seu depoimento intitulado “Sobre o Silêncio ou Manifesto pela Voz”, que reproduzo, na íntegra, logo abaixo.
“Parabéns” sqn, Professor Bernardo Santoro! O Senhor conseguiu ficar famoso como o machistinha mais comentado das redes sociais dos últimos dias! Melhor repensares o conteúdo das piadas que levas à público, uma vez que és pessoa pública e formador de opinião. Recomendo mais cautela.
E parabéns, de verdade, a ti, Maria Clara Bubna, que optou por não ficar calada, apesar de, como tu mesma disseste no teu manifesto, seres “o elo mais fraco desta relação”, por seres aluna, por seres mulher, por seres ainda muito jovem.
Segue o Manifesto de Maria Clara Bubna:
SOBRE O SILÊNCIO OU MANIFESTO PELA VOZ
Por muitos dias, eu optei por permanecer calada. Talvez numa tentativa de parecer madura (como se o silêncio fosse reflexo de maturidade) ou evitando que mais feridas fossem abertas, eu escolhi, nesse último mês, por vivenciar o inferno em que fui colocada com declarações breves e abstratas e conversas pessoais cautelosas. Mas se tem uma coisa que eu descobri nesse mês é que a maior dor que poderiam me causar era o meu silenciamento, o meu apagamento por ser mulher, jovem, “elo fraco” de toda relação de poder. Eu decidi portanto recuperar minha voz. Esse texto é um apelo a não só o meu direito de resposta, mas o meu direito a existir e me manter de pé enquanto mulher.
Eu nunca vi necessidade de esconder meus posicionamentos. Seja sobre o meu feminismo ou minhas preferências políticas, sempre fui muito firme e verdadeira com o que acredito. Mantive sempre a consciência de que minha voz era importante e que, junto com muitas outras vozes, seriamos fortes. Exatamente por isso, nunca vi necessidade de me esconder. Decidi fazer Direito baseada nessa minha ideia de que a união de vozes e forças poderia mudar a quantidade brutal de situações hediondas que o sistema apresenta.
Dentro da Faculdade de Direito da UERJ, acabei encontrando um professor que possui postura claramente liberal. Ele também nunca fez questão de esconder suas preferências políticas, mesmo no exercício de sua função. Apesar de ser meu primeiro ano na faculdade, passei alguns muitos anos no colégio durante os ensinos fundamental e médio e tive professores militares, conservadores, cristãos ferrenhos. Embates aconteciam, mas nunca ninguém se sentiu ofendido ou depreciado pelas suas preferências ideológicas. O debate, quando feito de maneira saudável, pode sim ser enriquecedor. Para minha surpresa, isso não aconteceu no ambiente universitário.
Ouvindo Bernardo Santoro se referir aos médicos cubanos como “escravos cubanos”, a Marx como “velho barbudo do mal”; explicar o conceito de demanda dizendo que ele era um “exímio ordenhador pois produzia muito leitinho” (sic) e que o “nazismo era um movimento de esquerda”, decidi por me afastar das aulas e tentar acompanhar o conteúdo por livros, gravações, grupos de estudo… Já ciente do meu posicionamento político e percebendo minha ausência, o professor chegou a indagar algumas vezes, durante suas aulas: “onde está a aluna marxista?”
No dia 15 de maio deste ano, Bernardo postou em sua página do Facebook, de maneira pública, um post sobre o feminismo. Usando o argumento de que se tratava de uma “brincadeira”, o docente escarneceu da luta feminista e das mulheres de maneira grosseira e agressiva. A publicação alcançou muitas visualizações, inclusive de grupos e coletivos feministas que a consideraram particularmente grave, em se tratando de um professor, como foi o caso do Coletivo de Mulheres da UFRJ, universidade em que Bernardo também leciona.
A partir do episódio, o Coletivo de Mulheres da UFRJ escreveu uma nota de repúdio à publicação do professor, publicada no dia 27 de maio na página do próprio Coletivo, chegando rapidamente ao seu conhecimento.
Foi o estopim. Fazendo suposições, o professor começou a me acusar pela redação da nota de repúdio e a justificou como fruto de sua “relação conflituosa” comigo, se mostrando incapaz de perceber quão problemático é escarnecer, de maneira pública, de um movimento de luta como o feminismo.
Fui então ameaçada de processo. Primeiro com indiretas por comentários, onde meu nome não era citado. Alguns dias se passaram com uma tensão se formando, tanto no meio virtual quanto nos corredores da minha faculdade. Já se tornava difícil andar sem ser questionada sobre o assunto.
Veio então, dias depois, uma mensagem privada do próprio Bernardo. A mensagem me surpreendeu por não só contar com o aviso sobre o “processo criminal por difamação” que o professor abriria contra mim, mas por um pedido do mesmo para que nos encontrássemos na secretaria da faculdade para que eu me desligasse da minha turma, pois o professor não tinha interesse em continuar dando aula para alguém que processaria.
Nesse ponto, meu emocional já não era dos melhores. Já não conseguia me concentrar nas aulas, chorava com uma certa frequência quando pensava em ir pra faculdade e essa mensagem do professor serviu para me desestabilizar mais ainda. Procurei o Centro Acadêmico da minha faculdade com muitas dúvidas sobre como agir. Foi decidido então levar o assunto até o Conselho Departamental que aconteceria dali alguns dias.
No Conselho, mesmo com os repetidos informes de que não se tratava de um tribunal de exceção, Bernardo agiu como se fosse um julgamento. Preparou uma verdadeira defesa que foi lida de maneira teatral por mais de quarenta minutos. Conversas e posts privados meus foram expostos numa tentativa de deslegitimar minha postura. Publicações minhas sobre a militância feminista e textos sobre minhas preferências políticas foram lidos pelo professor, manipulando o conteúdo e me expondo de maneira covarde e cruel. Dizendo-se perseguido por mim, uma aluna do primeiro período, Bernardo esqueceu-se que dentro do vínculo aluno/professor há uma clara relação de poder onde o aluno é obviamente o elo mais fraco.
Eu, enquanto aluna, mulher, jovem, não possuo instrumentos para perseguir um professor.
O Conselho, por fim, decidiu pela abertura de uma sindicância para apurar a postura antipedagógica de Bernardo. Não aceitando a abertura da sindicância, o professor, durante o próprio Conselho, comunicou que iria se exonerar e deixou a sala.
Foi repetido incansavelmente que a questão para a abertura da sindicância não era ideológica, mas sim sobre a postura dele como docente. Bernardo, ao que parece, não entendeu.
No dia seguinte, saiu uma reportagem no jornal O Globo sobre a questão. O professor declara que eu sempre fui uma “influência negativa para a turma”. Alguns dias depois, a cereja do bolo: seu amigo pessoal, Rodrigo Constantino, publicou, em seu blog na Revista Veja, uma reportagem onde eu era completamente difamada e exposta sem nenhum aviso prévio sobre a citação do meu nome. A reportagem por si só já era deprimente, mas o que ela gerou foi ainda mais violento.
Comecei a receber mensagens ameaçadoras que passavam desde xingamentos como “vadia caluniadora” até ameaças de “estupro corretivo”. Meu e-mail pessoal foi hackeado e meu perfil do facebook suspenso.
A situação atual parece estável, mas só parece. Ontem, no meu novo perfil do facebook, recebi mais uma mensagem de um homem desconhecido dizendo que eu deveria ser estuprada. Não, eu não deveria. Nem eu nem nenhuma outra mulher do planeta deveria ser estuprada, seja lá qual for o contexto. Nada nesse mundo justifica um estupro ou serve de motivação para tal.
Decidi quebrar o silêncio, romper com essa postura conformista e empoderar minha voz. É preciso que as pessoas tenham noção da tensão social que vivemos onde as relações de opressão estão cada vez mais escancaradas e violentas.
Em todo esse desenrolar, eu me vi em muitos momentos me odiando. Me odiando por ser mulher, me odiando por um dia ter dado valor à minha voz. Me vi procurando esconderijos, me arrependendo de ter entrado na faculdade de Direito, de ter acreditado na minha força. Me detestei, senti asco de mim. Mas eu não sou assim. Eu sou mulher. Já nasci sentindo sobre mim o peso da opressão, do machismo, do medo frequente de ser violada e violentada. Eu sou forte, está na minha essência ter força. E é com essa força que eu escrevo esse texto.
Estejamos fortes e unidos. A situação não tende a ficar mais mansa ou fácil. Nós precisamos estar juntos. É essa união que vai criar rede de amor e uma barreira contra essas investidas violentas dos fascistas que nos cercam. Foi essa rede de amor e apoio que me manteve sã durante esse mês e é essa rede que vai nos manter vivos quando o sistema ruir. Porque esse sistema está, definitivamente, fadado ao fracasso.
Abrace e empodere sua voz.
Maria Clara Bubna
Rio de Janeiro, junho de 2014.

domingo, 22 de junho de 2014

Chico, samba, setenta e poesia


Postado em 21 jun 2014
por : 
chico buarque velho
Chico Buarque fez setenta anos ontem e esta é uma boa oportunidade para falar um pouco sobre sua obra.
Chico é vítima da “maldição” da língua portuguesa. É a mesma sofrida por Machado de Assis, Fernando Pessoa ou outros poucos autores, poetas e compositores que estão, qualitativamente, entre os maiores da história da humanidade, mas ficam um degrau abaixo no reconhecimento universal.
A poesia é especialmente difícil de ser traduzida, o que torna tudo ainda mais injusto. Mas independentemente do reconhecimento, Chico é equivalente a Bob Dylan, amplamente reconhecido como o maior poeta da música.
Ao mesmo tempo, Chico se utilizou positivamente do português, provavelmente a língua mais rica do mundo. Você pode ser emocionalmente mais preciso no português do que no inglês (e grande parte das outras línguas), pelas possibilidades gramaticais, sobretudo.
Entre os compositores, eu não conheço ninguém que tenha escrito como Chico Buarque. Isso, no mundo inteiro e em todos os tempos. E diria que ninguém, incluindo poetas não-musicais, teve ou tem a mesma, digamos, estabilidade criativa.
Chico não foi como tantos artistas que sentam em cima das glórias passadas. Foram décadas de obras muito boas e surpreendentes, mesmo já tendo feito e falado tanta coisa.
É evidente que Chico Buarque não é infalível. Para o meu gosto, ele se excede no artifício de uso do infinitivo. “A sonhar”, “a andar”, “a cozinhar”, etc. É um artifício costumeiramente de preguiçosos – é fácil rimar assim. Mas é engraçado dizer isso, porque o perfeccionismo é um dos traço mais claros de sua obra.
Fora do campo poético, Chico escreveu alguns livros que nem me atrevo a criticar, pela limitação do meu conhecimento em literatura de prosa. Posso dizer, no entanto, que sequer cheguei ao fim de “Budapeste”, o único que tentei ler. Não gostei.
Mas Chico é Chico na música. Não na prosa, não na política, não na decoração de sua casa.
Vou comentar uma canção em especial, uma das grandes passagens do compositor que acho pertinente invocar depois das mortes de operários nas obras da Copa do Mundo: “Construção”.
Adianto que não me impressiono com a teoria tecnocrática das proparoxítonas em “Construção”. Eu poderia apostar que é uma questão muito mais rítmica do que vontade de acabar com proparoxítonas por capricho. Não duvidaria que ele tivesse notado a estrutura gramatical só depois de escrever.
Essa música se divide em dois objetos fundamentais: a construção do arranjo, montado gradativamente como se fosse uma construção mesmo (que até cai no fim); e a tristeza da história.
Mas se você dá um passo à frente na interpretação, pode notar que o que a torna tão triste não é exatamente a morte do operário que tropeçou no alto da construção em que trabalhava.
Também não é o fato de sua mulher não ser a única, nem que o cara tem que beber “essa cachaça desgraça” para suportar as coisas. É sobretudo o fato de ele ser tão irrelevante e pequeno para o senso comum que oheadline é “morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego”.
É o típico detalhe quase subliminar ao estilo Chico Buarque. Dá um sentido muito mais amplo para a história do que ele aparenta contar.
Tenho a sensação de que este senso comum mudou para melhor desde que a música foi escrita. Talvez, em alguma parte, em razão da própria crítica que a música faz.
Os operários mortos nas obras da Copa foram muito lamentados. É certo que a Copa dá holofotes para isso. Deve haver mais operários mortos por aí que nós sequer ouvimos falar.
Ainda assim, foi um alento ver a comoção em torno dessas mortes – a genuína, não a cínica anti-tudo-que-está-aí. Esses cínicos, na verdade, gostaram que os caras morreram, porque isso comprovaria suas teses de que o Brasil está à beira do abismo e o mundo está acabando.
Esse povo da indignação cretina e oportunista é exatamente quem Chico Buarque retratou em Construção. Não falo do operário que caiu do céu como se fosse pássaro. Falo dos transeuntes que ali só viram um corpo na contra-mão atrapalhando o tráfego.
Chico Buarque, se não é reconhecidamente uma das grandes glórias da humanidade, é um monumento brasileiro. Sua contribuição vai muito além da música, embora para mim, o grande Chico seja o compositor.
Que tenha um feliz aniversário e muitos anos de vida. E que nesses anos, continue contribuindo com sua inteligência para, como de costume, transformar o mundo ao seu redor.
Chico é um cara muito forte e muito grande.
chico-buarque

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Antonio Lassance Não existia combate à corrupção política antes do governo Lula Lula e Dilma são hoje acusados de fazerem pouco justamente por aqueles que não fizeram nada além de aparelhar o Estado para fins partidários


A corrupção ainda é um grave problema no Brasil porque o combate à corrupção ainda está em sua infância. Tem pouco mais de 10 anos.

É a partir do governo Lula que se cria a Controladoria Geral da União; a Polícia Federal multiplica seu efetivo e o número de operações; e as demissões de servidores envolvidos em ilícitos se tornam regra, e não exceção.

É bem verdade que, antes, já existiam a Polícia Federal, o Ministério Público e uma Corregedoria-Geral da União. Mas alguém conhece alguma estatística relevante dessa época? Não existe. O combate à corrupção no governo FHC é traço.

A única estatística mais polpuda daquela época é a do ex-procurador-geral da República de FHC, Geraldo Brindeiro, que, até 2001, tinha em suas gavetas mais de 4 mil processos parados - fato que lhe rendeu o apelido de “engavetador-geral da República”.

De 2003 a 2013, compreendendo os governos de Lula e Dilma, a expulsão de servidores acusados de corrupção quase dobrou, passando de 268, em 2003, para 528, em 2013.

Gráfico 1 - Servidores expulsos do serviço público (2003-2013)
Dados da CGU, disponíveis no Relatório de acompanhamento das punições expulsivas aplicadas a estatutários no âmbito da administração pública federal.http://www.cgu.gov.br/Correicao/RelatoriosExpulsoes/Punicoes_2003-2013.pdf


As operações da Polícia Federal saltaram de 9, em 2003, para mais de 200, a partir de 2008 (dados da Polícia Federal  http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas).

Gráfico 2 - Operações da Política Federal e número de servidores presos (2003-2012)
 
Fontedados da Polícia Federal, em gráfico produzido em estudo do Instituto Alvorada:http://institutoalvorada.org/transparencia-e-combate-a-corrupcao-nos-governos-lula-e-dilma/

Antes de 2003, se os escândalos envolvessem políticos, aí é que não acontecia nada vezes nada. Apenas dois casos podem ser citados com algum destaque na atuação da PF.

O primeiro foi a prisão de Hildebrando Pascoal, em 1999. Hildebrando era deputado pelo então PFL (hoje DEM) no estado do Acre e acabou condenado por chefiar um grupo de extermínio. Ficou célebre pela sessão de tortura em que uma pessoa teve os olhos perfurados; as pernas, os braços e o pênis amputados com uma motosserra; e um prego cravado na cabeça.

O outro foi o caso Lunus, a operação da PF de março de 2002 que vasculhou a sede da construtora Lunus, de propriedade da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, então no PFL. Naquele ano, Roseana era candidata à Presidência da República e estava bem melhor posicionada nas pesquisas do que o candidato do PSDB, José Serra. A operação foi coroada de êxito: criou um escândalo que sepultou a candidatura de Roseana.

O PSDB, que se diz contra o aparelhamento do Estado para fins partidários, tinha à frente da PF o delegado Agílio Monteiro Filho, que se candidataria a deputado federal pelo PSDB no mesmo ano de 2002.

Não existia combate à corrupção política antes de 2003. Isso é coisa do Lula e dessa tal Dilma Rousseff, hoje acusados de fazerem pouco justamente por aqueles que não fizeram nada além de aparelharem o Estado para fins partidários.


(*) Antonio Lassance é cientista político

quinta-feira, 19 de junho de 2014

As coisas no Brasil da Copa não estão perfeitas – mas estão sensacionais


Postado em 18 jun 2014
Imagina na Copa?
Imagina na Copa?
Nunca imaginei que veria uma Copa no Brasil. E jamais imaginaria uma Copa por aqui nessas circunstâncias.
Escrevi essas duas frases na semana passada, impressionado com o sentimento médio de bode, ou de indiferença, ou de antagonimos dos brasileiros diante da Copa, que começaria em São Paulo dali a poucas horas.
Escrevi isso aqui aqui também: acho que a ausência de ufanismo e o fim da ditadura do futebol significam amadurecimento do país. Mas a inapetência para a maior festa do planeta é muito surpreendente. (E não estou falando do movimento anticopa, isso é outra coisa, de que venho tratando no Manual). Falo do jeito blasé com que os brasileiros, mesmo os loucos por futebol, os que se indignaram em 78, choraram em 82, vibraram em 94 e em 2002, estão tratando o evento. Há mais sinais de festa junina na cidade do que de Copa. Talvez seja coisa de país que está se acostumando a integrar o circuito global dos megaeventos e deixando de ser jeca, do tipo que se deslumbra com o holofote internacional jogado sobre nós. Talvez seja um cansaço com “isto que está aí” e com a coreografia previsível capitaneada pela FIFA. Mas não consigo entender, do ponto de vista anímico, sensorial, da emoção, um Brasil a poucos dias de receber uma Copa em seu território que mais parece uma grande Nova Zelândia ou uma enorme Índia, que só tivesse interesse por Rúgbi ou Críquete, respectivamente.
Felizmente, uma semana depois, isso já não faz o menor sentido. Está velho de séculos. A Copa está aí e está indo muitíssimo bem, para surpresa de uns, alívio de outros e decepção de mais um tanto de patrícios, que queriam mais era que tudo implodisse espetacularmente diante dos olhos do mundo.
The Alzirao street party
A Copa está aí e está indo muitíssimo bem
NÃO VAI TER COPA, IMAGINA NA COPA… OPS, PERAÍ, COMO É QUE É MESMO?
Outra coisa que perdeu enormemente o sentido são expressões como “Não Vai Ter Copa” ou mesmo “Imagina na Copa”. São duas versões – uma, mais dura e carrancuda, e outra, mais melíflua e irônica, da mesma autossabotagem azeda, do mesmo viralatismo visceral, do mesmo espírito de porco deletério que habita em nós. Há doses fartas disso em nossa constituição moral. A Copa nos trouxe essa clareza. E essa, a meu ver, é uma tremenda aprendizagem que precisamos realizar como nação. Mais cedo ou mais tarde. E, por que não?, agora. O ufanismo é uma coisa burra. Mas se jogar sempre para baixo, e esperar sempre o pior de si mesmo, e ter certeza do fracasso pessoal – e torcer para esse fracasso – é uma coisa ainda mais burra.
O blog Viomundo traz boa matéria sobre isso: “Aos poucos, realidade vai matando o ‘imagina na Copa’, onde se lê: “Em Belo Horizonte, por exemplo, há transporte bom e barato entre os aeroportos e o Mineirão, o que facilita muito para aqueles que acompanham suas seleções e fazem viagens rápidas, num país continental. Embora falte sinalização em inglês e espanhol em muitos lugares, há um grande número de pessoas fornecendo informações, especialmente mas não apenas nos aeroportos. Em Confins, turistas estrangeiros no saguão reclamaram do sinal de transmissão dos jogos, baixado pela internet (depois descobrimos tratar-se de algo bancado por um patrocinador). Um dos visitantes pediu que eu reclamasse em nome dele. Fui fazê-lo e, para nossa surpresa, descobrimos que havia um ambiente especial para os passageiros em espera. Tudo muito bacana, bem organizado.”
Um amigo, o empresário Jônatas Abbott, escreve sobre ter assistido Holanda vs Austrália em Porto Alegre: “temos muitos problemas a resolver na nossa cozinha brasileira. Mas minha experiência na Copa hoje foi algo de tirar o fôlego. A organização do evento em tudo, do banheiro à entrada, dos voluntários às torcidas, tudo estava ESPETACULAR. Primeiro mundo. Milhares e milhares de gringos felizes da vida caminhando num dia de sol na orla de Porto Alegre, cantando e celebrando juntos. Dentro do estádio tudo absolutamente impecável. E olhem, pessoal, não sou ufanista nem governista. Mas hoje tenho que elogiar. Saí da minha casa no bairro Rio Branco e rapidamente cheguei à ciclovia da Ipiranga e por ela cheguei até o Caminho do Gol. E, exatamente como informado, havia um bicicletário debaixo do viaduto, dentro da área restrita, onde prendi nossas bikes. Experiência perfeita. Apesar de saber o quanto uma parte de Porto Alegre sofreu em imensos engarrafamentos. Mas a Copa funcionou. E como ‘turista’ em minha própria cidade, me senti um privilegiado hoje. Ponto. Por hora.”
Holandeses na praça XV de Porto Alegre
Holandeses na praça XV de Porto Alegre
E rum relato muito bom da sua ida ao Beira Rio para a partida entre França vs Honduras, Luis Felipe dos Santos, um dos editores do site impedimento.org, nos leva a enxergar como foi a sua estreia em jogos de Copa do Mundo. Sua lente passa pelos brasileiros, pelos estrangeiros, pelo jogo, pela festa – e também pelos problemas. Vale a leitura.
NIZAN GUANAES ESTAVA CERTO
Enfim: as coisas não estão perfeitas, mas estão sensacionais. (Na frase genial de Tom Jobim, que ainda define bem as coisas: “Morar em Nova York é bom, mas é uma merda. Morar no Rio é uma merda, mas é bom”. Eis aí uma boa metáfora para entender o que está acontecendo.) A nossa ineficiência simpática, ou a bagunça e a desorganização que mitigamos com alegria e calor humano, não representam a melhor combinação do mundo para sustentar um país ou forjar o caráter de um povo. (Ou talvez essa seja uma baita fórmula, um modus brasileiro do qual poderíamos nos orgulhar mais. Talvez devêssemos parar de nos lamentar por não sermos anglossaxões e perceber que, no final das contas, a nossa equação pode sim gerar uma entrega muito legal.) Seja com for, é o que temos. É o que somos.
Entrevistei o publicitário Nizan Guanaes há mais de um ano e ele dizia que a Copa do Mundo no Brasil, que ele afirmava ter apoiado desde o início, ainda na construção da candidatura do Brasil para sediar o evento, não seria uma Copa suíça, com tudo no lugar e funcionando perfeitamente, na hora certa. Mas que seria uma Copa brasileira, com muita festa e muita felicidade. De algum modo, é exatamente isso que temos visto nas ruas. E a êxtase está ainda mais nos olhos dos turistas estrangeiros, de cujo julgamento nós nos ressentíamos, do que propriamente nos olhos dos próprios brasileiros – nós ainda não vencemos totalmente a desconfiança com a nossa capacidade de entregar ao mundo um evento correto, ainda que imperfeito, e espetacular. Do nosso jeito, com esse estilo de realizar cheio de tortuosidades, mas que ainda assim não deixa de caminhar e de construir. Estamos recém começando a nos dar conta de que está todo mundo gostando e que estamos mesmo prestes a realizar a melhor Copa da história.
08_AP120611017092
‘A única coisa que podia ser melhor é a seleção da Inglaterra’
O jornal inglês The Guardian publicou matéria reforçando essa ideia.  “Há coisas piores na vida do que caminhar na orla de Copacabana sob a luz do sol a caminho do estádio para assistir a um jogo de Copa do Mundo. Então talvez não seja surpresa que o torcedor inglês Anthony McDowell não estivesse experimentando nenhuma das previsões sombrias que precederam a Copa no Brasil. ‘O lugar é adorável. As pessoas são ótimas. Há um clima de festa”, disse McDowell, que trabalha em andaimes em Liverpool. ‘A única coisa que podia ser melhor é a seleção da Inglaterra’.”
ATÉ OS AMERICANOS ESTÃO ENXERGANDO O ÓBVIO
O site Trivela mostra, numa seleção de fotos e vídeos, que os americanos estão talvez, pela primeira vez na história, despertando para o futebol e para a magia da Copa do Mundo. As aglomerações, em várias cidades dos Estados Unidos, fazem lembrar as capitais europeias e sul-americanas. Bem vindos, brothers! Estejam em casa. A casa é sua mesmo. Se puderem, troquem o McDonald’s pelo um bobó de camarão e o Starbucks por um espresso no Café do Ponto ou um cappuccino da Kopenhagen. Vocês não vão se arrepender!
O OCASO DA ESPANHA E O LAMPEJO AUSTRALIANO
Torres
Hasta la vista, Fernando Torres
Caiu a cidadela espanhola. A Espanha veio ao Brasil, foi goleada pela Holanda, tomou dois do Chile, e está de malas prontas para voltar a Madri. Fará um jogo melancólico contra a Austrália, sua companheira no grupo, com zero pontos. Fim de geração. Há uma certa melancolia em ver o tik taka travando, Iniesta lento, Xavi no banco. Torço muito para que essa geração de ouro, que ganhou tudo em seus clubes e com La Fúria, não seja só um ponto fora da curva, mas que represente uma inflexão na curva do futebol espanhol, do qual sempre se esperou muito e que demorou muito para começar a vencer e convencer. Que a Espanha se mantenha como uma das grandes seleções do mundo, formando craques e encantando a todos aqueles que gostam do bom futebol.
Chile fans
A Austrália foi heroica hoje no Beira Rio. Fez a sua melhor partida na história. E só não venceu a poderosa Holanda por ingenuidade. O jogo poderia ter sid 4 a 3 para os Socceroos, ao invés de 3 a 2 para os holandeses, com direito a um gol antológico de Cahill, que não deveria ter mais de pagar por drinks pelo resto de sua vida nos bares do seu país. Ao longo da partida, com o domínio australiano em campo, não pude deixar de pensar nas seguintes manchetes e posts nas redes sociais: “O melhor lugar do estádio é do Van Persie, que assistiu ao jogo de dentro do campo”. “Sjneider perdido no meio campo, em má fase, irreconhecível”. “Olha, se foi assim contra a Austrália, imagina contra Alemanha, Itália ou Argentina…” e “Van Gaal burro”. É uma mera transposição da ciclotimia e da bipolaridade da torcida e da imprensa brasileiras, que ecoaram ontem, depois do nosso empate contra o duro time do México, para o universo da seleção da Holanda, que até ontem era vista, por esses mesmos patrícios, como o bicho papão devorador de criancinhas.
PERDÃO, DIEGO
DC
DC
Imagine um menino brasileiro pobre que tenha saído do pais, com uma bolsa para estudar no exterior. High School, depois um College de bom nível. E que tenha virado executivo numa grande empresa daquele país que o acolheu. Aqui ele jamais teria tido as mesmas chances. Aí um belo dia, depois de famoso, ele recebe convite para vir trabalhar no Brasil. E responde, educadamente, que prefere continuar sua vida lá fora. Só que aí, a cada vez que vem fazer negócios no país, é hostilizado pelos locais. As vaias ao Diego Costa, que não consigo entender nem aceitar, são isso. Talvez uma prova para ele, mas certamente uma prova para mim, de que ele fez a coisa certa em picar a mula daqui.
O RACISMO ENTRE NÓS
Alguém explica por que os espanhóis são tão racistas? Portugueses também, é um horror. E nós, brasileiros, fomos formados basicamente pela soma das duas culturas. Bingo. Ou então isso é só expressão bruta e explícita de um sentimento odioso que perpassa muitos mais povos. Argentinos e uruguaios na fronteira com esse papo de ‘macaco’. Check. Gremistas com esse papo de ‘macaco’ para cima de colorados. Check. (E que gaúcho não lembra do comercial de TV com Taffarel, colorado, estapeando um ‘macaco’, em referência a Tião Macalé, que tinha acabado de estrelar um comercial do Grêmio? Check.) Italianos com esse papo para cima de Balotelli. Check. Bolivianos com esse papo para cima de Tinga. Check. Segregação histórica na África do Sul e nos Estados Unidos. Check. Vejo aí três coisas ignóbeis. (1) Enxergar diferença onde não há. (2) Se imaginar superior a outrem por uma questão ‘racial’. E (3) usar essa crença torta não como uma certeza íntima de autoafirmação mas sim como um disparo público visando a humilhação alheia. Isso tudo é de uma pobreza incrível e indesculpável. Não é a palavra em si, besta, que ofende – mas sim a intenção de ofender. Isso é que incomoda. Não é o idiota em si – mas a intenção que move o idiota. Aqui no Brasil, apesar de estarmos a léguas de podermos nos declarar isentos dessa imundície, racismo é crime, putada ibérica. Cadeia em vocês para curar a ressaca dos dois chocolates que acabaram de tomar. Hasta luego e passar bem.