terça-feira, 22 de setembro de 2015

FERNANDO PESSOA...........................................

Os 10 melhores poemas de Fernando Pessoa

OS 10 MELHORES POEMAS DE FERNANDO PESSOA

Pedimos aos leitores e colaboradores — escritores, jornalistas,  professores — que apontassem os poemas mais significativos de Fernando Pessoa. Escritor e poeta, Fernando Pessoa é considerado, ao lado de Luís de Camões, o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da literatura universal. O crítico literário Harold Bloom afirmou que a obra de Fernando Pessoa é o legado da língua portuguesa ao mundo.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em junho de 1888, e morreu em novembro de 1935, na mesma cidade, aos 47 anos, em consequência de uma cirrose hepática. Sua última frase foi escrita na cama do hospital, em inglês, com a data de 29 de Novembro de 1935: ‘I know not what tomorrow will bring’ (Não sei o que o amanhã trará).
Seus poemas mais conhecidos foram assinados pelos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, além de um semi-heterônimo, Bernardo Soares, que seria o próprio Pessoa, um ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa e autor do “Livro do Desassossego”, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século 20. Além de exímio poeta, Fernando Pessoa foi um grande criador de personagens. Mais do que meros pseudônimos, seus heterônimos foram personagens completos, com biografias próprias e estilos literários díspares. Álvaro de Campos, por exemplo, era um engenheiro português com educação inglesa e com forte influência do simbolismo e futurismo. Ricardo Reis era um médico defensor da monarquia e com grande interesse pela cultura latina. Alberto Caeiro, embora com pouca educação formal e uma posição anti-intelectualista (cursou apenas o primário), é considerado um mestre. Com uma linguagem direta e com a naturalidade do discurso oral, é o mais profícuo entre os heterônimos. São seus “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e os “Poemas Inconjuntos”. Em virtude do tamanho, alguns poemas tiveram apenas trechos publicados. Eis a lista baseada no número de citações obtidas.

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Ode marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

O cego e a guitarra

O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
Ilustração: Rui Pimentel

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Maomé - A Face Oculta do Criador do Islã/ SUPER iNTERESSANTE

Ele criou uma nação fundamentada em direitos trabalhistas, juros baixos e livre concorrência de mercado. Tinha uma esposa que ganhava mais do que ele e emancipou as mulheres quando assumiu o poder. Conheça a face realmente oculta do criador do islamismo.
POR Alexandre Versignassi

A maior dor de cabeça dos árabes que controlavam Meca, a cidade sagrada, era um certo Muhammad ibn Abdallah - Maomé, em português. O plano era acabar com ele de uma vez. Aquele "poeta insano", como eles diziam, tinha virado uma ameaça. Ele vinha angariando partidários fervorosos. Agora era questão de tempo até que o poeta, que se dizia profeta, assumisse o poder na cidade. "Maomé deve morrer" era a ordem. Mas não era simples matar um político em ascendência. Para evitar que a culpa recaísse sobre um assassino específico, e dificultar retaliações, eles bolaram um crime perfeito: cada um dos líderes da cidade deveria designar "um soldado forte e bem-nascido" de seu clã. O grupo invadiria a casa deMaomé no meio da madrugada, e cada um desferiria sua própria punhalada. Todos matariam o profeta, diluindo a culpa entre os membros do consórcio de assassinos.
Não deu certo, claro, se não este texto não estaria sendo escrito. E não só porque se trata de um artigo sobre a vida dele. Mas porque, sem a religião que ele criou, o mundo seria um lugar bem diferente. E bem pior, como vamos ver mais adiante. Por outro lado, é óbvio: o que motivou este texto foi a violência dos extremistas islâmicos, uma minoria estridente que comete crimes em nome de sua religião, sem saber que outro grande delito que está perpetrando é contra o próprio islamismo e, mais ainda, contra a imagem deMaomé, um homem que trabalhou pela civilização, não pela barbárie. Vamos conhêce-lo melhor agora.
O ÚTERO
Meca já era sagrada quando o bebê Maomé nasceu ali, no ano de 570. Bem sagrada: recebia peregrinos de todos os cantos da Península Arábica. Tudo por causa de um meteorito: a Pedra Negra, que caiu nas redondezas da cidade sabe-se lá quando e acabou virando um objeto de culto.
Em algum momento da história, que nunca foi registrado, os árabes colocaram muros em volta da pedra, cobriram e pronto: a casinha virou um santuário, a Caaba - o Cubo. Junto dela, colocaram 360 deuses, na forma de estatuetas. Um para cada dia do ano - que eles pensavam ter 360 dias. O ritual ali era dar sete voltinhas em torno da Caaba. Provavelmente porque esse é o número de dias de cada fase da Lua. Os deuses, afinal, podiam não ser astronautas, mas eram astros. A Lua era Hubal, uma divindade que ajudava os humanos a prever o futuro. Vênus, o planeta, era Uzza, a deusa do amor. Acima de todos, na sala da presidência celestial, sentava-se um deus tão poderoso que nem tinha nome. Era apenas "o deus": al-Ilah. E do mesmo jeito que "vossa mercê" virou "você", al-Illah virou Allah.
E Allah também era Javé. Os judeus tinham escrito a Bíblia mil anos antes. Ela já era o texto mais conhecido do mundo. E a ideia central ali, você sabe, era a de que Javé, o Deus do "d" maiúsculo, tinha criado o mundo e feito uma aliança com um homem chamado Abraão, o patriarca dos judeus. Graças à forte presença de comunidades judaicas na Arábia, essa ideia estava tão impregnada ali que os próprios árabes se viam como um povo quase bíblico. Acreditavam que também eram descendentes de Abraão, o homem que falava com Deus. A diferença é que, enquanto os judeus descenderiam de um dos filhos do profeta, Isaac, os árabes viriam do primogênito de Abraão: Ismael, o filho que ele teve com a escrava da família. Fazia sentido, já que a Bíblia dizia que Ismael foi mesmo morar nas bandas da Arábia, ainda que não dê mais detalhes além de dizer que ele "se tornou um bom atirador de flechas e arranjou uma mulher egípcia".
Só faltou combinar com os árabes que Javé era o único deus. Na cabeça deles, o deus de Abraão convivia com a deusa do amor, o deus da lua, a deusa do destino. E atendia pelo nome de "O deus": Allah. A verdade é que cabia de tudo na mente do árabe típico daqueles tempos - igual cabe na do brasileiro típico destes tempos, que sincretiza catolicismo com umbanda e espiritismo sem problema nenhum. Havia até quem fosse à Caaba prestar culto a Jesus Cristo, uma divindade que vinha ganhando terreno naquele panteão. Em suma, Meca era um tabule de crenças. E foi em meio a esse carnaval religioso que nasceria Maomé, o filho do seu Abdallah e da dona Amina.
O MENINO
Abdallah, rapaz boa pinta, estava indo para a casa da noiva. Não era um dia qualquer: logo mais, aconteceria a noite de núpcias dele com a jovem Amina. Mas no meio do caminho apareceu uma mulher. Uma estranha interceptou o futuro pai de Maomé na rua e o convidou para conhecer sua cama. Uau. Mas ele recusou educadamente e seguiu seu caminho rumo a outra cama, aquela onde consumaria seu casamento.
Mas homem você sabe como é. Abdallah cruzou com a estranha no dia seguinte e perguntou se o convite ainda estava de pé. Não estava. Porque mulher, bom, você sabe como é: "Ontem você tinha um brilho nos olhos", ela disse. "E hoje não tem mais. Não quero."
O tal brilho não era uma figura de linguagem. Segundo a tradição islâmica de onde vem essa história, os olhos de Abdullah realmente emitiam luz. E por um motivo claro: naquela noite, ele e Amina conceberiam o embrião deMaomé. O brilho era uma manifestação da semente do Profeta, que estava prestes a sair do pai e ser plantada no útero de sua mãe. Claro que esse episódio da literatura islâmica é provavelmente tão factual quanto a história dos Reis Magos na literatura cristã. É só uma lenda composta para dar um caráter sobrenatural ao nascimento de Maomé, do mesmo jeito que a historinha da Estrela de Belém faz do parto de Jesus um acontecimento transcendente. Com ou sem luz nos olhos, o fato é que Abdallah e Amina foram mesmo os pais de Maomé. Mas não por muito tempo.
O pai nem viu o filho nascer. Morreu enquanto Amina ainda estava grávida. O casal já vivia apertado. Os bens de Addallah somavam cinco camelos e algumas ovelhas - o que fazia dele um membro da "classe média baixa", caso existisse um IBGE em Meca. Agora, com ele morto, as perspectivas para Amina eram trágicas. Mas ela segurou a barra. Teve o filho sem problemas e propiciou uma infância saudável ao menino, com direito até a um "intercâmbio" com uma família de beduínos para aprender cedo as agruras do deserto - coisa que toda criança árabe tinha de fazer na época para "crescer forte". Mas Amina não teve tanto tempo para curtir o filho: morreu antes de ele completar 7 anos.
Os dentes de leite do garoro mal tinham caído e ele já era órfão de pai e de mãe. Então foi morar com o avô. E o avô morreu também. Agora Maométinha 8 anos e um destino: virar escravo. Esse era o fado da maior parte dos órfãos da época. Sem uma família para ajudar, a única saída era trabalhar em troca de (pouca) comida pelo resto da vida. Mas Maomé escapou dessa sina graças a um tio, Abu Talib, que era irmão do falecido Abdullah. O homem teve pena do sobrinho e decidiu adotá-lo. E o garoto finalmente ganhava uma família completa.
Mais do que isso, na verdade. Abu Talib era um xeique, um chefe de clã. Só para situar: estamos na Arábia pré-islâmica, uma terra sem rei, onde o que vale é a lei tribal. O xeique é o cacique, mas não manda sozinho. Para cuidar dos cultos religiosos, você tem o kahin, sujeito que cuida dos cultos e baixa o santo, servindo de porta voz para os deuses da tribo - deuses que gostavam de falar em rimas, já que recitar poesia nas celebrações era a especialidade dos kahins. No Poder Judiciário, você tem o hakam, um juiz de pequenas causas. O trabalho do hakam, aliás, não era dos mais complicados, porque a ética que reinava ali era a do olho por olho. A lei da retribuição. Quebrou o nariz de alguém? Seus dias de simetria facial acabaram. Matou? Morreu.
Mas esse sistema tribal estava entrando em crise. Àquela altura, a vida nômade, com tribos de pastores vagando em busca de pasto e só se cruzando de vez em quando, estava com os dias contados. O comércio já era forte o bastante para sustentar centros urbanos. E o normal agora era várias tribos ocuparem a mesma cidade. Só tinha um problema: as leis de cada tribo só valiam dentro de cada tribo. Se você matasse alguém de fora, problema do morto. Era como se um morador de Ipanema tivesse carta branca para quebrar narizes no Leblon. Não tinha como dar certo.
Tanto não tinha que o único caminho viável foi a formação de "megatribos". Vários clãs foram se unindo, via casamentos arranjados, que providenciavam laços de sague. Depois de algumas décadas, vinha o resultado: uma megatribo, que acabava subjugando as menores: podiam quebrar narizes à vontade. Sem medo de punição.
Em Meca, a megatribo era a dos Quraysh. Eles controlavam o comércio e as finanças da cidade. Os peregrinos da Caaba, por exemplo, eram uma fonte de renda garantida para os mecanos: propiciavam feiras e mercados vibrantes em volta do santuário. Mas, se você quisesse fazer parte da festa, abrindo uma barraquinha numa dessas feiras e mercados, não tinha jeito: teria que pagar impostos gordos para os líderes dos Quraysh.
Isso concentrava a renda. Então, se você precisasse de um cascalho para abrir sua barraquinha, teria que pedir emprestado para os Quraysh mesmo. E eles cobravam juros extorsivos. Não porque fossem perversos, ou burros (juro alto demais = inadimplência = mau negócio para o credor). Eles cobravam juro de agiota porque, quanto mais calotes rolassem, melhor. Explico. É que a garantia mais comum da época para casos de calote era particularmente interessante para o credor: pessoas. Você pedia um empréstimo e deixava um filho como garantia, ou você mesmo. Se você não pagasse, o credor ganhava um escravo. Num tempo sem máquinas, em que o trabalho braçal valia bem mais do que hoje, ganhar escravos valia mais a pena do que receber os empréstimos de volta. E, se a garantia fosse uma esposa ou uma filha, melhor ainda: ela acabaria engrossando o harém do credor.
Foi nesse cenário que Maomé cresceu. Mas não só nesse. É que o tio Abu Talib, além de Xeique e bem relacionado com os Quraysh, era um exportador, dono de caravanas de camelos que transportavam alimentos, especiarias e objetos preciosos deserto adentro. Ainda criança, Maomé começou a participar dessas viagens. E foi ótimo: o menino conheceu comunidades cristãs e judaicas bem mais a fundo do que se tivesse passado a vida em Meca. O fato de ele ter se inteirado bem sobre as duas religiões monoteístas ajudou lá na frente, quando ele criaria a terceira. Mas isso talvez nunca tivesse acontecido se Maomé não cruzasse o caminho de uma certa mulher, 15 anos mais velha que ele. A mulher que dominaria seu coração. E salvaria sua mente.
O HOMEM
Maomé estava com 25 anos e sem grandes expectativas. Ainda não tinha um negócio próprio. Dependia da boa vontade do tio para ter casa e emprego. Pelo menos ele já tinha feito uma bela reputação na arte que Henry Ford um dia chamaria de "comprar como se fosse lixo, vender como se fosse ouro". Era um baita negociante. E logo a fama do rapaz lhe renderia frutos.
Nessa época, ele teve a sorte de ser contratado por alguém bem mais rico que seu tio. Alguém poderoso, respeitado e que, contra todas as normas sociais da época, cometia o disparate de não ser homem: Khadija. Num tempo em que mulher era propriedade, e nem podia herdar bens se o marido morresse, Khadija era uma mulher emancipada. Uma self-made woman de 40 anos, dona de caravanas extremamente lucrativas, e que, mesmo não sendo mais nenhuma menininha, estava entre as mulheres mais cobiçadas da cidade. Bom, Khadija agora precisava de alguém para chefiar uma caravana para a Síria, mil quilômetros ao norte de Meca. Ela tinha ouvido falar muito bem de Maomé, então convidou o rapaz. Foi uma aposta vencedora: Maomé voltou da Síria com o dobro dos lucros que ela esperava. Aí foi paixão à segunda vista: ela ficou tão encantada que pediu o rapaz em casamento. Consta que ele não pensou duas vezes.
Agora Maomé estava por cima da carne-seca. Ao assumir o controle das caravanas de Khadija, finalmente conseguiu ter seu próprio (e grande) negócio. Virou um comerciante reverenciado até pela elite. Nessa época, seu melhor amigo passou a ser o próspero Abu Bakr, um Quraysh também dono de caravanas. E Maomé ganhou a honra de recolocar a Pedra Negra na Caaba, depois de uma reforma que os líderes da cidade tinham feito no santuário.
Mas ele não se sentia confortável com a situação. Se por um lado ele lucrava com o sistema de Meca, já que tinha se tornado um comerciante próspero, por outro, ele simplesmente não engolia a ditadura Quraysh. Os textos islâmicos sobre a vida do Profeta, que começaram a ser escritos enquanto ele estava vivo, reiteram que Maomé não suportava ver tanta gente se tornando escrava por não conseguir pagar dívidas. Ele também achava absurda a ideia de a elite de Meca ser imune à lei da retribuição. Mas não protestava. E ainda tinha um comportamento contraditório: apesar de fazer doações frequentes aos mais pobres e ser contra o escravagismo, tinha seu próprio escravo, Zayd.
Alem das doações, outra coisa que ele fazia para aplacar a consciência era sair para meditar sozinho nas montanhas em volta da cidade. E foi num desses retiros, quando já tinha 40 anos, que Maomé teve a maior de todas as experiências, segundo a liturgia islâmica.
Ele sentou numa caverna para meditar, quando ouviu uma voz, que lhe surgiu na cabeça. Uma voz autoritária, que dizia:
- Recita!
- Recitar o quê?, perguntou.
- Recita!!
Então Maomé recitou, mesmo sem saber o que iria recitar. Entrou numa espécie de transe e sentiu as palavras fluírem:
"Recita, em nome do seu Senhor que criou/ Criou a humanidade a partir de um coágulo de sangue/ Recita, que seu Senhor é generoso/ Aquele que ensinou pela escrita/ Ensinou à humanidade o que ela não sabia".
Não era um texto duro e seco, como está aqui. Em árabe, são versos gostosos de ouvir, feitos para cantar, já que têm uma métrica sofisticada e rimam. Os dois primeiros, por exemplo, fecham com palavras terminadas em "laq" (pronuncia-se "láco"). Os três últimos, com palavras que acabam em "am". Poesia, em suma. Ao estilo dos kahins.
Essa foi a primeira das várias recitações que Maomé faria nos 23 anos seguintes. E que dariam origem ao Alcorão (literalmente, "A Recitação"). Mas, segundo a tradição islâmica, não foi fácil para ele. Maomé ficou atordoado com a experiência de ver os versos saírem pela sua boca sem que ele soubesse o que estava acontecendo. Ele suava, tremia. E saiu da caverna direto para casa. Só relaxou depois de ser ninado nos braços da mulher. "Khadija?", ele suspirou, mais calmo. "Acho que fiquei louco." Hoje, 1,6 bilhão de pessoas discorda dessa afirmação. Mas naquele dia, bastava Khadija.
Ela confortou o marido. Depois, para que Maomé entendesse melhor o que tinha acontecido com ele na caverna, decidiu levá-lo a um especialista, digamos assim. Era Waraqa, um primo cristão de Khadija, versado nas escrituras judaicas e nos Evangelhos. E o diagnóstico foi imediato: aquelas eram palavras de Deus, Waraqa disse. O Criador estava se manifestando pela boca de Maomé. Ele era seu Mensageiro. Seu Profeta. E as mensagens tinham um intuito: deixar claro para o povo árabe que só existia um Deus. O Deus: Allah. Todas as outras divindades seriam ilusórias.
Dali em diante, Maomé passaria a pregar o monoteísmo vorazmente. Ia até a Caaba e discursava para os politeístas. Além de vociferar que os deuses deles não existiam, deixava claro que ele próprio era uma parte da história entre Deus e os homens. Allah, ele dizia, contou com vários profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Jesus. E agora tinha mais um, ali, diante deles:Maomé.
Na prática, a religião que Maomé criava naquele momento era um reflexo do próprio caldo cultural de Meca: tinha um pouco de cristianismo, muito judaísmo e um belo tempero árabe, com a poesia que remetia à cultura ancestral dos kahin. Só que Maomé tinha muito mais do que poesia para entregar. Foi aí que começaram os seus problemas. E sua ascensão.
O PROFETA
O Maomé resignado, que tentava aplacar a consciência fazendo caridade e isolando-se nas montanhas, estava morto. Agora nascia outro homem: o Profeta vivo, que peitava os Quraysh sem medo, descendo a lenha na cobrança de juros e, heresia máxima, pedindo a libertação dos escravos. Começou libertando o seu, diga-se.
Mesmo com esse discurso, Maomé angariou seguidores entre os homens ricos de Meca. Provavelmente pela beleza das recitações, muitos realmente o viam como um novo Abraão, um novo Moisés. A começar por seu amigo Abu Bakr, o comerciante Quraish. Seu primeiro ato como seguidor de Maomé, inclusive, foi gastar uma fortuna comprando escravos de seus colegas comerciantes para libertá-los.
Some tudo isso ao fato de que a própria mensagem monoteísta de Maométambém tinha um potencial destrutivo: se aquele homem continuasse convencendo gente na Caaba de que os deuses ali dentro eram de mentira, os peregrinos que se convencessem poderiam não voltar mais. Péssimo negócio para os Quraysh, que controlavam o comércio em torno do santuário. Pois é. Tinha chegado a hora de tomar uma providência contra o recitador.
Mas não seria fácil, porque o número de seguidores dele só crescia. No começo, eram só Abu Bakr, Zayd, seu escravo alforriado, Khadija, claro, e o menino Ali, de 13 anos - um primo de Maomé. Mas agora era diferente. Ele somava centenas de fiés. Além disso, seu tio Abu Talib era próximo demais dos Quraysh. Isso ajudava a manter as espadas deles longe do pescoço deMaomé. Mas não por muito tempo.
Quando Maomé tinha 50 anos, no ano de 620, Abu Talib morreu, deixando o caminho mais livre para os Quraysh. E pior ainda: Khadija também faleceu, aos 65. Sem suas duas maiores referências na vida, e ciente de que o pior se avizinhava, Maomé começou a tecer um plano para deixar Meca, mas sem largar seus seguidores. Líderes de outra cidade, Medina*, tinham convidadoMaomé para servir como haran, julgando uma disputa interna entre os clãs locais. O Profeta, então, orientou seus seguidores a se mudar para Medina, 300 quilômetros ao norte, sem alarde, para não chamar a atenção. Mas logo que os Quraysh perceberam o movimento decidiram agir. O temor agora era que Maomé estivesse formando um exército.
Foi aí que, em setembro de 622, decidiram matá-lo, lançando mão daqueles soldados "fortes e bem-nascidos". Mas os cães de aluguel dos Quraysh tiveram uma surpresa. Quando arrombaram a casa do Profeta, quem estava na cama era seu primo Ali. Maomé tinha acabado de fugir para Medina, junto com Abu Bakr. Ali, poupado, logo mais se juntaria aos dois.
Esse dia da fuga se tornou tão importante para o islamismo que o ano de 622 ficaria marcado para sempre. Tornaria-se o ano 1 da nova religião. O ano 1 d.H. (depois da Héjira, "Fuga", em árabe). E isso não aconteceria simplesmente porque o Profeta escapou da morte. Mas porque foi em Medina que Maomé fez sua maior obra: criou sua própria civilização.
Maomé agora era xeique. Longe de Meca, seus seguidores formavam uma tribo de fato: a Ummah ("comunidade"). Uma tribo que não era unida por laços de sangue, mas por uma ideologia. Ideologia que Maomé logo tiraria do mundo das ideias.
Uma de suas primeiras medidas no campo das coisas práticas foi baixar a Selic. Ou quase isso. O Profeta achava que os juros extorsivos estavam no cerne dos problemas de Meca, certo? Então ele criou um BNDES em Medina: os membros da Ummah concediam empréstimo a juro zero para outros "afiliados".
Outro problema que ele via em Meca era o monopólio dos Quraysh no comércio. Medina também tinha uma tribo que dominava o comércio, a Banu Qaynuca, de origem judaica. Ninguém podia vender nada em Medina sem pagar uma taxa a eles.
Maomé acabou com isso. Não na pancada, mas criando uma feira concorrente, que não cobrava taxa nenhuma. Nisso, ele quebrou o monopólio e forçou uma baixada nos preços. Capitalismo de raiz. De raiz mesmo: a Ummah abastecia seus mercados emboscando caravanas nos arredores de Meca.
Os saques também alimentavam outra novidade: um Bolsa Família. Todo membro da Ummah deveria pagar um imposto de acordo com suas posses, o zakat. E o dinheiro ia para seguidores mais pobres, que nem tinham como pagar imposto nenhum. Zakat significa "purificação". Ou seja, o imposto tinha um sentido religioso: os mais ricos "purificavam-se" ao doar sistematicamente uma porcentagem dos seus ganhos. Mas vale lembrar:  a religião era tão intrincada com todo o resto da vida social que nem havia uma palavra para "religião".
E ainda houve as reformas jurídicas. A lei principal continuava sendo o olho por olho, mas Maomé introduziu uma mudança fundamental ali. "A retribuição por uma injúria é uma injúria igual", diz o Alcorão, refletindo as leis tribais da Arábia. Mas tinha um complemento interessante ali: "Aqueles que esquecerem a injúria e buscarem uma reconciliação serão recompensados por Deus" (42:40). Além disso, a lei deixava claro que, dentro da igualdade da Ummah, não existiam fiéis "mais iguais", como acontecia com a elite de Meca. Um bandido poderoso, portanto, deveria ter o mesmo tratamento de um ladrão pé-de-chinelo, pelo menos no papel.
Outra mudança importante foi no campo dos direitos das mulheres. Maométinha se tornado polígamo em Medina. Como qualquer xeique da época, tinha várias esposas e concubinas. Mas era natural que, como viúvo de uma mulher poderosa, ele também entendesse que mulheres não eram camelos. Então ele concedeu um direito importantíssimo às mulheres da Ummah: elas poderiam herdar propriedades, pela primeira vez na história das Arábias. Ele também proibiu que maridos se apropriassem dos dotes de casamento, pagos pelo pai da noiva no ato do casório. O dinheiro deveria ser mantido como uma poupança exclusiva da mulher, funcionando como um seguro em caso de divórcio.
Em suma: se Maomé ressuscitasse hoje, deveria ser chamado para dar palestras de gestão pública. Seu pacote de reformas deu tão certo que vários habitantes de Medina entraram para a Ummah. Até porque era fácil: bastava aceitar que só havia um deus e que Maomé era seu profeta, estar disposto a pagar o zakat e pronto: você se tornava membro da tribo do Profeta. Tribo que, conforme foi ganhando mais membros, começou a ser conhecida por outro nome: Islã ("subordinar-se a Deus"). E seus membros passariam a ser chamados de "muçulmanos" ("aqueles que se renderam a Deus"). Mas quem não tinha se rendido a nada eram os Quraysh, lá em Meca. Eles não tinham esquecido a ameaça que Maomé representava. Ainda queriam matá-lo de todo jeito.
A primeira batalha entre os Quraysh e a Ummah aconteceu dois anos depois da Héjira, em 624. Foi num daqueles roubos de caravana. O pessoal de Meca soube, via espiões infiltrados em Medina, que os muçulmanos iriam saquear uma caravana específica, que vinha da Palestina. Então colocaram um exército de mil homens para protegê-la. Maomé chegou com 300. Deveria ser o seu fim. Não foi. Talvez por excesso de confiança dos Quraysh, talvez por muito mais excesso de confiança dos muçulmanos, o fato é que Maomévenceu. Dali para a frente, seguiram-se anos de batalhas.
Entre uma luta e outra, Maomé continuava tendo seus transes e recitando o futuro Alcorão. Os versos mais belicosos do livro sagrado são justamente dessa época. O mais conhecido é a surata (capítulo) 9, versículo 5: "Matem os idólatras, onde quer que eles estejam; capturem, acossem, embosquem". O contexto real deste texto é o da guerra contra os Quraysh, que infiltravam espiões em Medina. "Idólatra" (ou "politeísta", ou "infiel", dependendo da tradução) não é qualquer um que não seja muçulmano. A palavra está ali para representar um inimigo específico, e de um conflito que aconteceu há quase 1.500 anos.
E isso não significa que o Islã tenha mais apreço pela violência que outras religiões. Algumas partes do Antigo Testamento parecem ter sido escritas por Quentin Tarantino, dada a torrente de sangue. E o próprio Cristo, que aconselhava dar a outra face em caso de agressão, chegou a dizer: "Não pensem que vim trazer paz ao mundo. Não vim trazer paz, mas a espada" (Mateus, 10,34). E isso não significa que o cristianismo pregue a violência. No caso do Islã, vale o mesmo raciocínio.
De qualquer forma, Maomé foi mais feliz que seus predecessores bíblicos quando empunhou sua espada: ele passou por cima dos adversários. Em 629, com os Quraysh cansados de guerra e o Islã mais forte do que nunca, o Profeta reuniu um exército de 10 mil homens e marchou para Meca. Acabou conquistando a cidade sagrada sem nem derramar sangue, já que o inimigo se rendeu na hora. Pronto. Com Meca sob seu controle, Maomé agora era o homem mais poderoso da Arábia. Um destino que parecia distante do menino que nasceu sem pai e perdeu a mãe tão cedo.
Seu primeiro ato foi libertar todos os escravos de Meca. O segundo, despejar os deuses da Caaba, destruindo as imagens deles e consagrando o santuário a Allah - a Pedra Negra ficou, para a alegria de quem gosta de meteoritos.Maomé também poupou as estátuas de Jesus e da Virgem Maria, os únicos personagens do Alcorão representados por imagens dentro da Caaba. Mas Maomé não se aproveitou do poder. Não corou-se "rei de Meca" nem nada. Voltou para Medina, que tinha se tornado sua cidade de fato, e morreu em paz, aos 62 anos, deixando 12 viúvas, 3 filhos, 4 filhas e uma nova nação.
EPÍLOGO
Abu Bakr assumiu a liderança do Islã aos 58 anos, tornando-se o primeiro Califa ("sucessor", em árabe). O jovem Ali, que ainda tinha 30, era o favorito de uma parte dos seguidores. E ainda é. A sucessão criou uma dissidência pró-Ali hoje conhecida como "xiita", que forma uma minoria de 10% dentro do Islã. Os descendentes dos que apoiaram Abu Bakr são a maioria "sunita", que segue a suna, a "tradição", iniciada naquela época.
Os sucessores do Profeta não pararam em Meca. Continuaram a expansão da Ummah e, 50 anos depois da morte de Maomé, seus domínios estendiam-se até o Irã. Mais 50 anos e o norte de África e um pedaço da Índia já era deles. Outros 50, e eles já dominavam a Espanha - uma terra tão distante que, quando era meio-dia nessa ponta ocidental do império, o Sol já estava se pondo nos domínios mais orientais. Mas esse não foi só um dos maiores impérios do mundo. Foi um dos mais criativos também: enquanto a Europa se afundava na escuridão da Idade Média, o Islã construiu sua própria "Europa" alguns graus de latitude mais abaixo. Um continente unificado por uma nova religião, e que deixou como maior legado a ciência: boa parte da matemática que conhecemos hoje veio de gênios que nasceram sob a religião de Maomé. Uma religião humanitária, que, ao propor uma sociedade menos desigual e mais aberta ao diálogo, encarnou muito do que a humanidade tem de melhor. Que meia dúzia de psicopatas não acabem com esse legado.
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Entrevista | Médicos populares e o contraponto à mercantilização da saúde Por Redação revista FORUM

08/09/2015
A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares tem como objetivo fazer frente à ofensiva conservadora que ameaça o SUS, mercantiliza a saúde e afasta a medicina dos mais pobres
Por Ivan Longo, da Revista Fórum
Criado pelo governo federal há dois anos, o programa Mais Médicos surgiu da necessidade de se suprir a falta de profissionais de saúde dispostos a prestar serviços de atenção básica a populações carentes em periferias e regiões remotas do país. A carência de médicos desse perfil se dá, entre outros motivos, principalmente porque boa parte dos profissionais é formada sob uma lógica mercadológica de saúde que valoriza a especialização absoluta, restringe o serviço e acaba tornando a medicina um produto que é cada vez mais comercializado pelos planos de saúde, atraindo os médicos ao setor privado e elitizando o acesso.
A lógica mercadológica que impera nas instituições, por sua vez, não vem por acaso. Pesquisa recente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), por exemplo, mostra que os estudantes que se formarão médicos têm um perfil, em geral, elitizado: 73% deles se declaram como brancos e a renda familiar mensal mais comum é a de dez a trinta salários mínimos (R$ 6.780,01 a R$20.340,00). Mais de 80% dizem nunca ter trabalhado.
Esses dados talvez ajudem a explicar um pouco também o ódio que foi disseminado por parte da classe médica brasileira quando os médicos cubanos – em sua maioria negros – chegaram ao país para suprir as vagas que eles recusaram no Mais Médicos. Em evidentes episódios de racismo, os estrangeiros sofreram constrangimentos públicos e tentativas de desmoralização de suas capacidades.
Ao mesmo tempo em que esses médicos e médicas se recusam a trabalhar pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso universal, público e gratuito que o sistema procura oferecer vem sofrendo constante ameaça diante do poderio cada vez maior dos planos de saúde e da ofensiva conservadora que está instaurada no Congresso Nacional, através de propostas como a Emenda Constitucional 451/2014, de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que obriga as empresas a oferecerem planos de saúde privados para todos os funcionários.
Foi com o intuito de fazer um contraponto à ofensiva conservadora na área médica, proteger e fortalecer o SUS, lutar contra a elitização e restrição do acesso e exercer medicina voltada aos interesses da população, e não do mercado, que profissionais do país inteiro criaram, em parceria com movimentos sociais – como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) -, a Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.
“A Rede de Médicas e Médicos Populares nasce da necessidade de se fazer um contraponto à ofensiva conservadora também no setor de saúde e tem como missão ajudar a tecer um campo de unidade em defesa do SUS e do direito à saúde do povo brasileiro”, disse, no dia da apresentação da Rede durante o 13º Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, em Natal (RN), o médico de família Stephan Sperling.
Em entrevista à Fórum, a médica da família e comunidade Priscila Medrado, que atua no Distrito Federal e na coordenação estadual da Rede, analisou a atual conjuntura do sistema de saúde no país, a ofensiva conservadora da classe médica e falou sobre a motivação daqueles que militam pela medicina popular.
“Através das vivências, compreendi que a saúde está inserida em um contexto histórico e social, e o quanto é pautada pela lógica do mercado. Entendi a importância de se lutar por uma saúde voltada para as necessidades reais do povo (sendo ele protagonista dessa construção) onde o seu saber e cultura são valorizados e respeitados”, disse.
Confira a íntegra da entrevista e saiba mais sobre a Rede de Médicos e Médicas Populares.
Fórum – O que é ser uma médica popular? O que te motivou a isso?
Priscila Medrado – Na minha concepção, médico popular é aquele que está ao lado do povo e que tem como horizonte os interesses dos movimentos populares. Essa opção vem sendo construída ao longo da minha trajetória de militância iniciada com o movimento estudantil e aprofundada com os movimentos populares, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento Sem Teto de Salvador (MSTS). Estes cumpriram um papel fundamental na minha formação enquanto médica popular. Através das vivências, compreendi que a saúde está inserida em um contexto histórico e social, e o quanto é pautada pela lógica do mercado. Entendi a importância de se lutar por uma saúde voltada para as necessidades reais do povo (sendo ele protagonista dessa construção) onde o seu saber e cultura são valorizados e respeitados.
Fórum – Como surgiu a ideia e quais os objetivos da criação da Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares?
Medrado – A Rede de Médicos e Médicas Populares surge do esforço coletivo de um grupo de médicos progressistas, com a contribuição de movimentos populares, em se organizar e fazer o contraponto a essa ofensiva conservadora da categoria médica. Surge da necessidade de se criar um espaço de articulação nacional de médicos e médicas, a fim de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo continuamente ameaçado. Médicos, estes, que não se sentem representados pelas entidades da categoria e demandam voz.
Vem evidenciar que existem médicos que estão ao lado dos interesses da população brasileira e compromissados com a construção de um Sistema Público de Saúde gratuito, de qualidade, estruturado pela equidade, integralidade e universalidade. A Rede tem como objetivo combater qualquer prática de saúde que vá contra aos interesses do povo brasileiro e do SUS. Contribuindo para a construção de um movimento pela saúde, juntamente com os movimentos populares, tecendo uma identidade de médicas e médicos populares, não somente no Brasil, mas favorecendo o intercâmbio e a solidariedade em toda a América Latina.
Fórum – Como está sendo a articulação e qual será o modo de atuação?
Medrado – A Rede é um espaço democrático e horizontal, que se organiza através de núcleos, em diversas cidades brasileiras, que funcionam de forma bem flexível, respeitando a dinâmica própria de cada localidade. Os núcleos são responsáveis por construir as lutas da Rede a nível local e estadual. Cada estado possui um ou dois coordenadores estaduais que compõem a Secretaria Operativa Nacional da Rede.
As definições a nível nacional são discutidas e encaminhadas nas plenárias nacionais da Rede. Tivemos a segunda plenária nacional nos dias 29 e 30 de agosto, em Guarema, interior paulista. Nossas pautas e lutas se orientam pelas demandas dos movimentos populares com base nas necessidades concretas dos mesmos e na análise da conjuntura nacional e da saúde.
Fórum – Quantos médicos, atualmente, integram a rede?
Medrado – Hoje somos em torno de 200 médicos, distribuídos por todo o território brasileiro, crescendo a cada dia.
Fórum – O que os médicos e médicas que integram a rede têm em comum?
Medrado – Uma ideologia progressista, a identificação e valorização das lutas populares históricas em nossa realidade brasileira e latino-americana, e a defesa pelo SUS como contribuição essencial para uma sociedade mais justa, democrática, emancipatória e popular.
Fórum – Como avaliam a situação atual do SUS?
Medrado – Na atual conjuntura, o SUS está em disputa e vem sofrendo sucessivas derrotas, sendo continuadamente ameaçado pelo setor privado, sobretudo os planos de saúde, que estão entre uma das maiores doadoras de campanha de candidatos. No Congresso Nacional, há propostas de modificação e até extinção do SUS, movidas por força de interesses econômicos.
Isto se mostra quando analisamos as propostas em tramitação no Congresso Nacional, como a “Agenda Brasil”, do Senador Renan Calheiros (PMDB/AL), e a Proposta de Emenda Constitucional 451/2014, de autoria do presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que obriga as empresas a ofereceram planos de saúde privados para todos os funcionários. A aprovação dessa PEC seria um retrocesso para o SUS. Para esses setores, a saúde é tratada como mercadoria, enquanto nós a defendemos como direito universal e dever do Estado.
Fórum – Como médica, quais acredita que sejam os desafios que o país ainda tem na área da saúde?
Medrado – A luta contra o subfinanciamento do SUS é um grande desafio para a saúde pública. Seria necessária a criação de uma política econômica voltada para a garantia de direitos sociais, que viabilize um financiamento adequado para a saúde. Como a taxação de grandes fortunas e auditoria da dívida pública. Também apontaria a importância de uma reforma eleitoral no Brasil e o fim de financiamento privado de campanha como estratégia de combate ao atrelamento do Parlamento e interesses do mercado. O combate à privatização da saúde pública é outro desafio, já que essa política vem se intensificando nos últimos anos com as criações das Organizações Sociais (OS) e Empresas Brasileiras de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Fórum – Como avaliam o programa Mais Médicos, do governo federal?
Medrado – Avaliamos como positivo o programa Mais Médicos para o Brasil, por ter trazido benefícios concretos para a saúde da população brasileira, a citar a ampliação do acesso aos serviços de saúde, a melhoria na qualidade do atendimento da população e a redução da mortalidade infantil. Outro eixo estruturante do programa é a formação médica, com ampliação da oferta de vagas na graduação e residência médica, buscando a interiorização e reorientação da formação. O que se configura em uma oportunidade de se revolucionar o ensino e formação médica no país. No entanto, mantemos uma postura crítica quanto aos limites do programa e entendemos que é uma política emergencial. Seguimos lutando pela construção de um plano de cargos e carreiras para todas as trabalhadoras e trabalhadores do SUS.
Fórum – A chegada dos médicos cubanos ao país foi marcada pela hostilização de médicos brasileiros aos estrangeiros. De onde acha que vem esse preconceito?
Medrado – Infelizmente, existe uma cultura de ódio sendo disseminada em relação aos médicos estrangeiros, em especial aos cubanos. As críticas são vazias e sem fundamentos, alguns comentários chegam a ter cunho fascista e racista. Interpreto esse preconceito sob dois ângulos. O primeiro, sob a perspectiva de classe social: a categoria médica é, em sua grande maioria, elitizada, pertencendo às classes de maior renda, tendendo a defender os interesses da elite e não os das classes populares.
Assume, assim, a defesa de posturas corporativistas e de manutenção do status de poder na sociedade. A segunda é sob uma perspectiva racial. Basta olhar para uma foto de turma de graduação de medicina para ver o retrato do racismo no Brasil. Quantos são negros? A dificuldade em aceitar médicos cubanos acoberta, muitas vezes, a dificuldade de se aceitar um médico negro. Essas coisas precisam ser debatidas na sociedade. Mas é com muito pesar que digo que muitos ainda escolhem negar que existe discriminação racial no Brasil.
Fórum – De que forma essa elitização influencia na qualidade da saúde de um país? A Rede visa fazer um contraponto a essa classe?
Medrado – De forma negativa, com certeza. Se o discurso (e a prática) da grande maioria da classe médica e entidades representativas dessa classe é corporativista e pela manutenção dos seus privilégios, cada vez mais eles se distanciam da realidade concreta e do contexto de saúde da grande maioria da população brasileira. Como construir, de fato, uma saúde popular, isto é, voltada para as necessidades de todo o povo brasileiro quando interesses individuais e do mercado estão sendo priorizados? A Rede caminha exatamente no sentido oposto. Mas aponta para muito além do contraponto a essa classe. A Rede apresenta-se como um espaço de articulação daqueles que pensam de forma diferente, possibilitando a luta concreta para transformação dessa realidade.
Fórum – Acha que há um problema na formação de médicos no país?
Medrado – Sem dúvida. Com exceção de algumas escolas que conseguiram revolucionar o seu currículo e projeto pedagógico, a grande maioria dos cursos de medicina mantém sua formação voltada para uma lógica médica centrada, hospitalar e mercantilista. O foco é na superespecialização dos médicos, com muito pouco ou nenhuma inserção na atenção primária. Nestes currículos, ditos tradicionais, pouco se trabalha o aspecto psicológico, ético e humanístico do estudante durante o curso, o que gera um profissional deficiente no lidar com aspectos subjetivos, políticos e sociais das pessoas e comunidade em que está inserido. Assim, formamos médicos deficientes, com foco na doença e na medicalização. É necessário reorientar esse modelo, repensar o projeto pedagógico dos currículos de Medicina, buscando uma formação médica voltada para as necessidades da população brasileira.
Fórum – Como a Rede de Médicos e Médicas populares pretende mudar esse cenário?
Medrado – Construindo, juntamente com os movimentos sociais, um movimento de luta pela saúde pública, que represente os interesses e as necessidades de toda a população brasileira. Contribuindo com lutas concretas e acolhendo as demandas destes movimentos. Buscamos também estimular a retomada, por parte dos médicos e estudantes de Medicina, do debate em torno das políticas públicas de saúde, contribuindo para a formação política e a participação dos mesmos nos debates estruturantes da sociedade. Neste sentido, o site saude-popular.org, organizado pela Rede, tem sido uma ferramenta importante. Através dele buscamos acolher as demandas populares e construir políticas que venham a desconstruir o corporativismo e a mercantilização da saúde. Convidamos todos e todas que têm identidade com essa luta a se juntarem à Rede. Vamos participar dessa construção!
Fórum – Há expectativa de algum tipo de vínculo ou parceria com o governo, empresas ou entidades?
Medrado – A Rede tem total independência em relação ao governo, empresas ou entidades. Por ora, estamos construindo parcerias com alguns movimentos sociais e entidades da Reforma Sanitária, como CEBES e ABRASCO. Mas também mapeamos outros possíveis parceiros durante a II Plenária Nacional da Rede.