segunda-feira, 31 de março de 2014

Desgaste e democracia: o que levou os militares e se recolherem depois da ditadura


Brazil Independence Day

Publicado originalmente na DW.

Nascida de um golpe militar, em 1889, a República brasileira frequentemente viu, ao longo de seus primeiros cem anos, os militares desempenharem um papel de protagonistas na sua história.
Foi assim em 1930, no impedimento da posse do presidente eleito Júlio Prestes e na ascensão ao poder de Getúlio Vargas. Ou em 1945, quando o Exército depôs Vargas, encerrando a ditadura do Estado Novo. Ou em 1955, quando o chamado golpe do marechal Lott garantiu a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Mas as feridas abertas pela última intervenção militar na política brasileira, o golpe contra o presidente João Goulart em 1964, parecem ter sido mais profundas do que as causadas pelas ações anteriores – não só na sociedade, mas também entre os militares. Depois da ditadura, eles não se envolveram mais na política. Desde 1985, reina silêncio nas casernas.
Especialistas avaliam que, entre os motivos para essa mudança de atitude estão a Lei da Anistia, de 1979, e o desgaste dos governos militares, tanto por causa da repressão política como por terem, ao fim do regime, em 1985, entregue um país em crise econômica.
“Houve um cansaço do poder e uma decisão estratégica ao longo dos anos 1970 de fazer a transição democrática e um recuo para as suas funções constitucionais tradicionais. Eles julgaram que o seu papel político institucional havia sido cumprido, para o bem ou para o mal”, avalia o cientista político Fernando Schüler, diretor-geral do Ibmec/RJ. Por esse raciocínio, a Lei da Anistia seria um selo que permitiu que os militares saíssem do poder e que a elite civil retomasse o controle do país.
O professor Renato Luís do Couto Neto e Lemos, responsável pelo Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política da UFRJ, vê na estabilidade da democracia brasileira um dos motivos para o recolhimento dos militares. Para ele, o arranjo político criado pelo processo de transição, a partir de 1974, e consolidado pela Constituição de 1988 tem sido eficaz na garantia da estabilidade socioeconômica.
“Ademais, é preciso lembrar que um dos principais motivos para o surgimento do projeto de distensão política, por volta de 1973, foi o receio, entre os militares, de um desgaste que a permanência no poder traria para a organização militar”, diz Lemos. “A memória desse desgaste deve funcionar como um ‘sossega leão’ para eventuais candidatos a golpistas dentro da corporação. Mas não como uma imunização definitiva”, avalia.
Desgastes nos planos sociais e econômicos
Apesar de ter permitido o retorno ao país de líderes oposicionistas como Leonel Brizola, a Lei da Anistia também foi uma vitória para os militares, já que os isentou da apuração de responsabilidades sobre os crimes cometidos pelas forças de repressão do regime.
“Houve uma integração à institucionalidade por meio dessa lei, que foi o contrato político pelo qual nasceu a atual democracia brasileira. Uma democracia sem revanchismos, mas dolorosa, porque acabou produzindo muito esquecimento de infrações aos direitos humanos, que foram um dos motivos para o desgaste do regime militar”, afirma Schüler.
A economia também foi outro motivo importante para o desgaste dos militares. Apesar do crescimento durante o chamado “milagre econômico”, a expansão do Produto Interno Bruto não reduziu as desigualdades sociais nem diminuiu a pobreza. “O final dos anos 1970 é marcado por um acirramento da crise econômica, por governos militares desgastados em seu discurso de salvação da pátria”, diz Luiz Antônio Dias, chefe do Departamento de História da PUC-SP.
Outro desgaste ocorreu junto a setores importantes da sociedade civil, como a imprensa. De forma geral, ela apoiou o golpe em 1964, mas boa parte logo em seguida passou a clamar pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Muitas pessoas acreditavam que a intervenção militar seria rápida, como já havia ocorrido em outros momentos da história brasileira, o que não aconteceu.
Dias afirma que, em entrevistas dadas por alguns militares, é muito comum a ideia de que a ditadura se estendeu demais. Além disso, segundo ele, muitos militares se ressentem do “desprezo” por parte da sociedade civil em relação ao que fizeram durante o período em que estavam no poder.
“Eles reclamam que ‘todos’ pediram a intervenção e, hoje, esses mesmos dizem que os militares eram os ditadores e torturadores. É muito forte, entre eles, a ideia de que agiram em nome de uma opinião pública – o que eu contesto em minhas pesquisas”, afirma Dias. “Além disso, a conjuntura internacional deve ser levada em conta, já que os golpes militares, com raras exceções, não são bem vistos. Assim, esse desgaste pode ser visto como uma das causas para o recolhimento”, afirma Dias.
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sábado, 29 de março de 2014

Ana Rosa e ‘Leila’: desaparecidas que inspiraram livro e canção


A Comissão da Verdade tenta desvendar paradeiro de vítimas da ditadura que continuam desaparecidos
A Comissão da Verdade tenta desvendar paradeiro de vítimas da ditadura que continuam desaparecidos
Publicado originalmente na bbc brasil.
Há mais ou menos um ano, ganhei de presente um livro que me lançou em uma jornada inesperada pela história recente do Brasil, da minha família e de uma música.
Trata-se do romance político K, do escritor e acadêmico brasileiro Bernardo Kucinski.
O livro narra a busca desesperada de um pai por sua filha desaparecida política durante a ditadura militar no Brasil. É ficção, mas baseado em fatos verídicos – a desaparecida, Ana Rosa Kucinski, é a irmã do autor. A verdade sobre o desaparecimento de Ana Rosa vem emergindo aos poucos. Em 2012, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confessou ter incinerado seu corpo em uma usina de processamento de cana.
Enquanto lia aquela história comovente e triste, me vi resgatando cenas do meu passado, ainda adolescente, crescendo em São Paulo.
Frases do meu pai. “Não fique em grupos na porta da escola depois da aula. Venha direto para a casa”.
Histórias da família. Por que mesmo o vovô foi preso?
E as músicas. Músicas que refletiam o clima daquele tempo, de segredos e meias verdades. Que traziam mensagens em códigos. Músicas que eu cantava, mas não entendia.
Entre elas, Aparecida, de Ivan Lins e Maurício Tapajós, incluída no álbum Somos Todos Iguais Nessa Noite, lançado em 1977. Não saía de minha cabeça enquanto mergulhava sobre a tragédia de Ana Rosa. Era como se a música tivesse sido feita para ela.
“Diz, Aparecida
Me conta por onde que você andou?
Me conta por que é que você
Não tem mais a mesma afeição
Não tem mais a mesma euforia
Não tem mais a mesma paixão?”

50 Anos do Golpe

A história de Ana Rosa me levou a sugerir um documentário de rádio para o Serviço Mundial da BBC que explicasse ao mundo o que foi o golpe de 1964. E mostrasse como o Brasil tenta, hoje, lidar com esse capítulo sombrio da nossa história.
Fui ao Brasil falar com Bernardo Kucinski e várias outras pessoas, inclusive meu próprio pai. Acabei me lançando em uma viagem sobre a história, nunca bem detalhada para mim, da minha família.
Descobri, por exemplo, que meu avô tinha sido preso duas vezes. A primeira, na década de 30, em Goiás.
Influenciado pelas ideias do líder comunista Luís Carlos Prestes, ele tinha se filiado a um partido de tendências comunistas.
Por causa desse “crime”, meu avô foi parar na prisão.
Ele foi preso por “algum governo ligado a ideologias nazistas”, meu pai contou. Foi amarrado e torturado sob guarda militar.
Meu avô sobreviveu, mas a vida em Goiás tinha ficado muito perigosa para ele. Temendo por sua vida, vendeu suas terras às pressas e se mudou com a família para Minas Gerais. Perdeu tudo o que tinha. Nunca mais quis se meter com política.
No entanto, 30 anos depois, o passado comunista voltou a assombrar a vida da família.
Em 64, quando o golpe militar estourou, meu avô foi preso novamente.
Ele não foi torturado dessa vez, mas aquela experiência anterior de violência, tortura, perseguição e empobrecimento ficou marcada nele e na nossa família. Era como um trauma silencioso.
Entrevistei ainda brasileiros que hoje tentam ajudar o país a superar o trauma da ditadura e seguir em frente.
Entre eles, o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Ivan Seixas. Os psicanalistas Moisés Silva e Cristina Ocariz, que estão oferecendo apoio psicológico às vítimas da violência do Estado durante o governo militar.
Veroca Paiva, filha do deputado Rubens Paiva, que investigava o envolvimento dos Estados Unidos no golpe. Paiva foi torturado e morto pela ditadura. Até hoje seu corpo não foi encontrado.
Falei com tanta gente. Nem todos entraram no corte final – o velho e dolorido dilema do jornalismo – mas suas vozes estiveram comigo em minha jornada.
Finalmente, entrevistei o general de brigada, hoje na reserva, Durval Andrade Neri. Orgulhoso do golpe, o general defendeu e justificou a ditadura militar.

Trilha Sonora

Enquanto mergulhava nas histórias da minha família, de Bernardo Kucinski e de tantos outros, entrelaçadas na história do meu país, a canção Aparecida continuava a tocar na minha cabeça.
“Diz, Aparecida
Sumir desse jeito não tem cabimento
Me conta quem foi, por que foi
E tudo o que você passou
Preciso saber seu tormento
Preciso saber da aflição”
Quem seria essa Aparecida que – hoje me dou conta – era na verdade uma Desaparecida?
Procurei Ivan Lins. Ocupado, em turnê, ele não achava tempo para falar comigo.
Falei com João Lins, filho de Ivan. Simpático, orgulhoso do pai. Mas não conhecia a história por trás da canção.
Maurício Tapajós, autor da letra, já não está entre nós.
Decidi procurar Heloísa Tapajós, esposa do irmão de Maurício – o compositor Paulinho Tapajós. Quem sabe o Paulinho conhece a história? – pensei.
Para minha tristeza, descobri que Paulinho – com quem, por sinal, trabalhei em 2007, quando gravei uma canção dele – também havia partido.
Que aflição. Não é possível que desapareça também a história por trás da música.
Apelei novamente ao Ivan. E dessa vez, fui recompensada com uma história de superação.
“Essa canção foi escrita em 1976. A ideia foi do Maurício. Ele me falou de uma amiga dele que tinha desaparecido por uns quatro anos, presa pela repressão, e que tinha reaparecido. Como foi brutalmente torturada, trazia sequelas do vandalismo repressor”, escreveu Ivan Lins, em um e-mail.
Três anos depois de comporem a canção, Maurício e Ivan viajaram para o casamento de um dos músicos da banda em Alfenas, Minas Gerais. E foi lá que Ivan conheceu a “desaparecida”.
“O Maurício me apresentou. Ainda bonita, com grandes olhos verdes. Seu nome era, se não me engano, Leila – não posso afirmar com certeza”.
“Ainda a encontrei mais uma vez, num evento (não lembro qual). Depois, nunca mais”.
“E essa é a historia. Posso ter errado um pouquinho as datas, mas foi bem perto disso”, concluiu Ivan Lins.
Aparecida não ficou tão conhecida como outras faixas do LP Somos Todos Iguais Nessa Noite.
Porém, quatro décadas depois, quando a Comissão da Verdade se esforça para recuperar a memória de um tempo de trevas na história do Brasil, me soa ainda mais bela e comovente. E não poderia ser mais relevante e atual.
“Diz, Aparecida
Diz, conta o segredo
Diz e denuncia
Que a verdade escondida
É mentira, é medo”
E por onde andará Leila? E quantas outras histórias deste doloroso período da nossa história se mantêm anônimas?
A canção ‘Aparecida’, interpretada por Mônica Vasconcelos e Swami Jr, é trilha sonora do documentário CliqueBrazil: Confronting the Past, transmitido pelo BBC World Service como parte da cobertura dos 50 anos do golpe militar brasileiro.

terça-feira, 25 de março de 2014

Petrobras e o vale-tudo contra Dilma

Por Bepe Damasco, em seu blog:

Mais cedo do que se esperava, a oposição parlamentar e midiática ao governo de Dilma Rousseff partiu para os golpes abaixo da linha da cintura. Na certa, desesperados pela divulgação das últimas pesquisas de intenção de voto, que reforçam a condição de favorita absoluta da presidenta nas eleições de outubro, os candidatos oposicionistas e suas bancadas parlamentares lançaram mão de uma estratégia própria dos desatinados sem voto : envolver a própria presidenta da República num cipoal de denúncias de irregularidades contra a maior empresa brasileira, a Petrobras. 


De quebra, operam pelo desgaste da Petrobras, ignorando tudo que ela representa para o Brasil, especialmente no momento em que a extração de óleo na camada do pré-sal avança a pleno vapor, sinalizando um futuro de melhoria significativa das condições de vida do povo brasileiro. Na verdade, os que exploram política e eleitoralmente o caso Pasadena não se conformam com o regime de partilha e com a não privatização da empresa.

Aqui, cabe um parênteses para o flagrante caso de desonestidade intelectual do esquálido candidato Eduardo Campos, que, para surfar na onda de ataques levianos contra o governo, e, quem sabe, conquistar uns votinhos, insinuou que a real intenção do governo é privatizar a empresa. Tamanho disparate só me faz festejar a mudança de lado do governador de Pernambuco. Ele merece se perfilar junto a tucanos e demos, ao O Globo, à Folha e à Veja. 

Ações temerárias e decisões equivocadas de investimento por parte Petrobras devem ser investigadas pelos órgãos responsáveis. Isso é uma coisa, Outra bem diferente é transformar a Petrobras na Geni da vez para suprir a indigência eleitoral e programática da oposição. Usar a Petrobras com esse intuito é fazer mal ao país, é prejudicar negócios vitais para o Brasil, é arranhar a imagem da locomotiva do desenvolvimento brasileiro.

Como se movem pelo mais mesquinho interesse eleitoreiro, pouco importa algumas evidências que saltam aos olhos de quem examina a questão com um mínimo de isenção :

1) Dilma não era presidenta da República, em 2006, quando o Conselho de Administração da Petrobras votou favoravelmente ao investimento em Pasadena. Na ocasião, ela ocupava o cargo de ministra da Casa Civil e presidia o conselho da estatal.

2) Não cabe ao Conselho de Administração a decisão final sobre os investimentos da empresa. O conselho define as diretrizes estratégicas. Acerca do plano de investimentos, o CA funciona, portanto, como um órgão consultivo.

3) As explicações oficiais da presidenta, segundo as quais seu voto teve como base relatórios precários e imprecisos, são corroborados por grande parte dos conselheiros da época, dentre eles o empresário Jorge Gerdau e o insuspeito hoje presidente da Editora Abril, Fábio Barbosa.

4) É absolutamente impossível para uma empresa de tamanho colossal como a Petrobras acertar a mão em todos os investimentos que faz. Tampouco não é razoável supor que seus dirigentes possam blindá-la integralmente contra malfeitos. Uma radiografia de todos os negócios e investimentos da Petrobras ao redor do mundo, certamente indicaria que a maioria esmagadora das operações são exemplos de êxito e trazem vultosos recursos financeiros para o Brasil.

5) Embora a Petrobras tenha enfrentado problemas com sua sócia em Pasadena, o que gerou prejuízos à companhia, não é verdade que ela seja um monumento ao desperdício. Pasadena hoje opera normalmente, produzindo 16 mil barris diários.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Quem financiou, quem dirigiu e quem participou da Marcha da Família de 1964, a original


marcha da família 64

Publicado originalmente no Opera Mundi.

Há 50 anos, em 19 de março de 1964, era realizada na cidade de São Paulo a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Estima-se que entre 500 mil e 800 mil pessoas partiram às 16h da Praça da República em direção à Praça da Sé, no centro, manifestando-se em resposta ao emblemático comício de João Goulart, seis dias antes, defendendo suas Reformas de Base na Central do Brasil. Passaram à história como as genuínas idealizadoras e promotoras da marcha organizações femininas e mulheres da classe média paulistana. No entanto, por trás deste aparente protagonismo feminino às vésperas do golpe que deu lugar a 21 anos de regime ditatorial, esconde-se um poderoso aparato financeiro e logístico conduzido por civis e militares que tramavam contra Jango. Um detalhe: quase todos eram homens.
Certamente, a atuação de alguns grupos femininos como “pontas-de-lança” da opinião pública contra o governo Goulart foi peça-chave na conspiração levada a cabo pelo complexo empresarial-militar do Ipês-Ibad (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Destas instituições femininas, as principais eram: a carioca CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) e as paulistas UCF (União Cívica Feminina) e MAF (Movimento de Arregimentação Feminina).
Conforme disseca a historiadora Solange Simões em seu livro Deus, Pátria e Família: As mulheres no golpe de 1964, a inserção das mulheres na conspiração que resultou no golpe foi estratégica. Com o intuito de fomentar uma atmosfera de desestabilização política e convencer as Forças Armadas a intervir, as campanhas femininas buscavam dar “espontaneidade” e “legitimidade” ao golpismo, tendo sido as mulheres incumbidas — pelos homens — de influenciar a população.
“Aqueles homens, empresários, políticos ou padres apelavam às mulheres não enquanto cidadãs, mas enquanto figuras ideológicas santificadas como mães”, escreve a pesquisadora. A própria dona Eudóxia, uma das lideranças femininas, reconhece, em entrevista à historiadora, sua função tática:
Nós sabíamos que como nós estávamos incumbidas da opinião pública, os militares estavam à espera do amadurecimento da opinião pública. Porque sem isso eles não agiriam de maneira nenhuma. A não ser que a opinião pública pedisse. E foi isso que nós conseguimos.
Graças a uma bem-sucedida ação, eventos considerados aparentemente “desconexos” foram tomados como “reações espontâneas” de segmentos da população. Na verdade, essas manifestações apresentavam uma sólida coordenação por parte da elite.
Veja abaixo os principais aspectos desse movimento feminino que esteve à frente da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de 19 de março de 1964.
1.) COMO SURGIU E QUEM LIDERAVA?
Quem eram, afinal, essas mulheres que despontavam na rua, em passeatas e comícios, como “donas-de-casa” e “mães-de-família brasileiras”, envolvidas na conspiração civil-militar? Já chamadas de “guerrilheiras perfumadas” ou confundidas com mulheres “das classes médias”, as direções dos movimentos eram constituídas, essencialmente, por mulheres com baixa formação intelectual da burguesia e das elites militares e tecnoempresariais.
Essa ala feminina do golpe foi criada meses antes das eleições gerais de outubro de 1962. Suas principais líderes eram parentes próximas dos grandes nomes do setor empresarial e militar envolvidos na conspiração. Contaram, obviamente, com todo o aparato financeiro e logístico de seus cônjuges, primos e irmãos para erguer suas instituições. “O meu marido me incentivava: ‘Eu ajudo no que precisar’, dizia ele”, relembra em entrevista concedida a Solange Simões, a vice-presidente da CAMDE, Eudóxia Ribeiro Dantas, mulher de José Bento Ribeiro Dantas, empresário ipesiano presidente da Cruzeiro do Sul, uma das maiores companhias aéreas do país.
Do lado carioca, por exemplo, a CAMDE foi criada por Amélia Molina Bastos, irmã do general Antônio de Mendonça Molina, do setor de informação e contrainformação do Ipês. A ideia partiu declaradamente do vigário de Ipanema, Leovigildo Balestieri, e dos líderes ipesianos engenheiro Glycon de Paiva e general Golbery do Couto e Silva. A CAMDE foi lançada no auditório do jornal O Globo, no Rio, oferecido por seu diretor-proprietário, Roberto Marinho. Na manhã do dia 12 de julho de 1962, o periódico carioca estampava na capa: “A Mulher Brasileira está nas Trincheiras”.
Já em São Paulo, nas reuniões de fundação da UCF, compareceram figuras como: Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, diretor-proprietário do jornal O Estado de S.Paulo, e Regina Figueiredo da Silveira, primeira presidente da união paulista e irmã do banqueiro João Baptista Leopoldo Figueiredo, presidente do Ipês e primo do último presidente do ciclo militar.

marcha da família 64 - 2
2.) EM TERMOS PRÁTICOS, O QUE FIZERAM?
Desde sua fundação, a CAMDE carioca e a UCF paulista se engajaram na ação política de combate e desestabilização do governo Goulart, orientadas ideologicamente e materialmente pelo complexo Ipês-Ibad.
“Caravana a Brasília”: pelo veto a Santiago Dantas
Em 1962, as mulheres organizaram uma “Caravana a Brasília” com o objetivo de formar um efetivo “coro popular” para impedir a posse de San Tiago Dantas como primeiro-ministro. Esse movimento integrava parte da política de rejeição, pela elite, de uma composição com a ala moderada do trabalhismo. Para tanto, entregaram ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, 60 mil cartas pedindo a não aprovação do plebiscito antecipado, bem como o impedimento da delegação de poderes ao conselho de ministros, fundamental à continuidade das Reformas de Base do governo Goulart.
Boicote ao Última Hora, o “diário da guerra revolucionária”
Um dos poucos jornais que se atreveram a criticar a tentativa de deturpar o processo eleitoral por parte dessas organizações femininas, o Última Hora, de Samuel Wainer, foi sistematicamente perseguido pela CAMDE e UCF. Caracterizando o periódico como “o diário da guerra revolucionária que se travava no Brasil”, as senhoras passaram a formar comissões de visitas a empresários, industriais e comerciantes que anunciavam no jornal, pedindo para que suas verbas publicitárias fossem suspensas. A coordenação dessa campanha de boicote foi feita em grande parte em sincronia com o Ibad, liderado pelo integralista Ivan Hasslocher, outra figura central na campanha anti-Jango. Hasslocher se exilou em Genebra depois de comprovados, pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de 1963, os atos de corrupção de seu instituto no processo eleitoral de outubro de 1962.
“Marchas da Família com Deus pela Liberdade”: quem convocou, dirigiu e financiou
Logo após o discurso de Goulart na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, a CAMDE se engajou em campanhas por telefone, incitando as mulheres a permanecerem em casa e acenderem velas em suas janelas como sinal de protesto e fé cristã. A massiva “Cruzada do Rosário em Família”, do padre norte-americano Patrick Peyton, pároco de Hollywood, foi o ensaio-geral para as marchas anticomunistas de abril e março de 1964, fundadas no lema “A família que reza unida permanece unida”.
Seis dias depois do comício de Jango, em 19 de março, data em que se comemora o dia de São José, padroeiro da família, realizou-se em São Paulo a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, coroando o auge dos esforços das associações femininas orientadas pelo Ipês.
A marcha reuniu entre 500 mil e 800 mil pessoas para protestar contra o comício de Goulart na Central do Brasil. A idealização da marcha partiu do deputado federal Antônio Sílvio Cunha Bueno (PSD), um grande proprietário de terras e diretor da norte-americana Willys-Overland Motors do Brasil, cuja matriz ficou famosa pela fabricação, em parceria com a Ford, do jipe usado pelos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial. Ao contrário da propagandeada supervalorização do papel dessas mulheres na condução dos protestos, a organização da marcha não ficou a cargo nem da UCF nem do MAF, ambas entidades sediadas em São Paulo. Quem levou o evento adiante foi o próprio Cunha Bueno, além de outros políticos paulistas, como o vice-governador Laudo Natel, Roberto de Abreu Sodré (UDN) e Conceição da Costa Neves (PSD), deputada mais votada no estado nas eleições de 1962.
Acompanhados de suas esposas, políticos importantes se fizeram representar nas marchas: Adhemar de Barros e sua mulher, dona Leonor; além de Carlos Lacerda, governador do Rio, e dona Letícia. O deputado Herbert Levy, integrante da UDN e líder do Ipês, bradava: “o povo não quer ditaduras, o povo não quer comunismo, o povo quer paz e progresso”. Cunha Bueno discursava: “Todos vocês nessa praça representam a pátria em perigo de ser comunizada. Basta de Jango!”.
Em São Paulo, os banqueiros Hermann Morais Barros (Banco Itaú), Teodoro Quartim Barbosa (Comind) e Gastão Eduardo Vidigal (Banco Mercantil), líderes ipesianos do primeiro escalão, ficaram incumbidos de articular e obter adesão das entidades de classe de todo o país para as marchas.
“O Ipês de São Paulo também fez contribuições diretas e em dinheiro para o movimento feminino: consta do relatório de despesas de 1962 e do orçamento de 1963 uma contribuição mensal para a UCF”, conclui a historiadora Solange Simões.
A organização logística da marcha foi feita no prédio da Sociedade Rural Brasileira, supervisionada pelo Ipês e contando com a presença de membros de diversas entidades patronais e associações industriais. No bem aparelhado quartel-general do movimento feminino fizeram-se ainda pôsteres, cartazes e bandeiras com as seguintes palavras de ordem:
Abaixo o Imperialismo Vermelho
Renúncia ou Impeachment
Reformas sim, com Russos, não
Getúlio prendia os comunistas, Jango premia os traidores comunistas
Vermelho bom, só o batom
Verde, amarelo, sem foice nem martelo
marcha da familia 64 - 3

3.) HOUVE PROTAGONISMO FEMININO?
Uma vez vitorioso o golpe de Estado de 1º de abril de 1964, foi deflagrada a chamada “Marcha da Vitória”, reunindo 1 milhão de pessoas no Rio de Janeiro. Logo no dia 3 de abril, o líder do Ipês João Baptista Leopoldo Figueiredo, que estava em reunião na Guanabara na qual discutiam a escolha do “novo candidato” à presidência, telefonou para sua irmã Regina Figueiredo Silveira, presidente da UCF. Motivo: o banqueiro primo-irmão do último presidente militar solicitava à irmã-ativista que o lançamento da candidatura de Castello Branco fosse feito pela própria UCF.
Paulo Ayres Filho, outro líder ipesiano e empresário da indústria farmacêutica, ficou incumbido de elaborar, junto com uma equipe da UCF, o manifesto feminino de apoio ao marechal, levado às estações de TV e jornais pelas senhoras.
O general Olympio Mourão Filho, que marchou de Minas Gerais em 31 de março, antecipando-se ao plano dos conspiradores do eixo Rio-São Paulo, comentou, sobre as marchas das mulheres, que “como todos os homens que participaram da revolução, nada mais fez do que executar aquilo que as mulheres pregavam nas ruas para  acabar com o comunismo”. Cordeiro de Farias foi ainda mais longe, de acordo com Solange Simões, “ao afirmar que a revolução foi feita pelas mulheres”.
Historiadores que estudaram o período são mais céticos: não veem a movimentação das mulheres como sintoma do engajamento universal da população brasileira no combate a Jango. Na verdade, essas mulheres, teriam funcionado como massa de manobra dos conspiradores — todos homens — para criar uma sensação de “espontaneidade” e “clamor popular” apta a dar “legitimidade” ao novo governo. Como aponta a pesquisadora Solange Simões, a marcha foi “ostensivamente uma manifestação das classes média e alta”. E mais: foi muito restrita, pois em uma cidade de 6 milhões de habitantes, como São Paulo, apenas 500 mil pessoas participaram.
Até o embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, notório por seu apoio ao golpismo, percebeu a falta de apoio popular no movimento, conforme relata a Washington em um telegrama de 2 de abril de 1964: “A única nota destoante foi a evidente limitada participação das classes mais baixas na marcha”. Seu espião militar no Brasil, o coronel Vernon Walter também atesta que, até a realização das passeatas, havia um receio de que o movimento para derrubar João Goulart fracasse por falta de apoio popular.
Desferido o golpe em 1º de abril, as marchas do Rio e São Paulo foram seguidas de outras menores, organizadas pelas associações femininas em Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Santos.
“Se antes os maridos enalteciam o papel de mãe e esposa para manter a mulher no lar e discriminadas na esfera pública, passam agora a enaltecer aquele papel para comprometê-la na ‘política’”, arremata Solange Simões. Assim, revelando o ilusório protagonismo vislumbrado pelo espetáculo dessas marchas de massivas mobilizações, “a ‘mulher-dona-de-casa’ que respeitava, no lar, a autoridade do chefe da família, deveria, enquanto mulher-cidadã procurar a autoridade do Estado – autoridade que residia principalmente no seu braço armado”, conclui a historiadora.

A história de Pasadena que a mídia não contou /O Cafezinho


Enviado por  on 20/03/2014 – 5:15 pm668 comentários
Já que o assunto do momento é Pasadena, fomos pesquisar a origem da refinaria, e tentar esclarecer algumas confusões.
A nossa mídia, como de praxe, está muito mais interessada em produzir uma crise política do que em esclarecer a sociedade.
A refinaria de Pasadena foi fundada em 1920, pela Crown Central Petroleum, uma das companhias remanescentes do império Rockfeller, cujo grupo Standard Oil havia chegado a controlar 88% do refino de petróleo nos EUA.
Em 1911, a Suprema Corte americana valida uma lei anti-truste defendida pelo governo (Sherman Antitrust Act) e a Standard é dividida em 34 empresas. Uma delas, será a Standard Oil of Indiana, que depois será renomeada para Amoco, a qual, por sua vez, dará origem a Crown Central Petroleum.
Os herdeiros mais conhecidos da Crown, os Rosenberg, decidiram, no início dos anos 2000, vender os ativos da companhia, incluindo a refinaria de Pasadena.
Não foi uma venda fácil. Em 2003, um artigo no Baltimore Sun explicava porque se tratava de um negócio complexo. Construir uma nova refinaria igual àquela custaria mais de US$ 1 bilhão, estimava o autor da matéria, Jay Hancock. Nos livros contábeis da Crown, ela vinha avaliada em US$ 270 milhões, mas operadores do mercado diziam que os Rosenberg teriam sorte se conseguissem US$ 100 milhões por ela.
Ao cabo, a refinaria foi vendida para Astra Holding USA, uma subsidiária da Astra Oil, sediada na California, e que por sua vez é controlada pela belga Transcor Astra Group.
Nunca se soube o preço final da refinaria. A imprensa tem repetido que a Astra adquiriu a refinaria em 2005 por US$ 42 milhões. Mas eu ainda não consegui encontrar esse valor em lugar nenhum. É preciso verificar qual era o estado da refinaria antes da compra pela Astra, e que melhorias, exatamente, foram feitas. O que eu sei é que a refinaria vinha enfrentando, há décadas, uma dura oposição da comunidade local, por causa da poluição emitida, e que a justiça havia tomado decisões, mais ou menos na época da venda, que obrigavam a refinaria a se adaptar às novas exigências ambientais do governo.
Está claro que a Astra, logo após a compra, fez uma série de investimentos na refinaria. Aí entra a primeira grande confusão: compara-se o preço de compra pela Astra em 2005, com o preço pago pela Petrobrás, em 2006. São negócios diferentes. A Astra compra uma refinaria que há anos não era modernizada. No momento da compra, o novo presidente da refinaria, Chuck Dunlap, declara que a Astra investiria US$ 40 milhões nas instalações, preparando-as para processar outros tipo de petróleo e fabricar mais variedades de derivados. “Nós temos grandes planos”, asseverou um animado Dunlap à imprensa local.
Uma refinaria moderna é altamente tecnificada, com poucos funcionários. Seu principal ativo são os equipamentos e a tecnologia usada, mas a localização é fundamental, naturalmente. A refinaria de Pasadena, por exemplo, fica bem no coração do “Houston Ship Channel”, uma espécie de eixo no porto de Houston, aberto para o Golfo do México (onde ficam os principais poços de petróleo em operação nos EUA) e com ligações modais para todo os EUA.
Em 2006, a Petrobrás pagou US$ 360 milhões para entrar no negócio, sendo US$ 190 milhões por 50% das ações e US$ 170 milhões pelos estoques da refinaria. No balanço da Petrobrás de 2006, o valor total para a aquisição da refinaria de Pasadena, incluindo despesas tributárias, ficou estabelecido em US$ 415,8 milhões.
Isso tudo aconteceu no início de 2006.
Ao final do mesmo ano, o negócio foi abalado com a descoberta do pré-sal no Brasil.
Até então a Petrobrás tinha planos de investir na refinaria de Pasadena para adaptá-la ao refino de óleo pesado vindo do Brasil. A companhia planejava abocanhar um pedacinho do mercado de refino dos EUA, de longe o maior do mundo.
Com a descoberta do pré-sal, houve uma revolução nos planos da Petrobrás. Todo o capital da empresa teve de ser imediatamente remanejado para o desenvolvimento de exploração em águas profundas e prospecção nas áreas adjacentes às primeiras descobertas. A refinaria de Pasadena teria que esperar.
Aí veio 2008, e a crise financeira que fez evaporar os créditos no mundo inteiro. A Astra, provavelmente já aborrecida porque a Petrobrás havia deixado Pasadena de lado, e espremida pelo aperto financeiro que asfixiava empresas em todo mundo, decide sair do negócio. E obtém uma vitória judicial espetacular na Corte Americana, obrigando a Petrobrás a pagar US$ 296 milhões pelos 50% da Astra, mais US$ 170 milhões de sua parcela no estoque.
Esses estoques de petróleo e derivados, sempre é bom lembrar, não constituíram prejuízo à Petrobrás, porque foram consumidos e vendidos.
A esse montante foram acrescidos mais US$ 173 milhões, correspondente a garantias bancárias, juros, honorários e despesas processuais.
Com isso, o total a ser pago pela Petrobrás elevou-se a US$ 639 milhões. Como a Petrobrás recorreu, naturalmente, a decisão final saiu apenas em junho de 2012, após acordo extrajudicial. O total, agora acrescido de mais juros e mais custos legais, ficou em US$ 820 milhões.
A refinaria continua lá, funcionando. É um ativo da Petrobrás. A presidente da Petrobrás relatou a ministros do TCU que teria recebido propostas de venda da refinaria de US$ 200 milhões, mas rejeitou as ofertas.  O momento não é bom para vender. Neste momento deve ter um monte de gente esfregando as mãos e querendo explorar a “crise política” para comprar Pasadena a preço de banana. O valor das refinarias nos EUA voltou a subir bem rápido, na esteira da recuperação da economia americana e talvez, ao cabo, a Petrobras consiga vendê-la por um preço vantajoso ou então converte-la numa refinaria mais lucrativa. Se me permitem um palpite talvez infeliz, eu acho que a Petrobras não deveria vender a refinaria de Pasadena, porque ela pode a se tornar estratégica para o escoamento dos derivados do presal no mercado norte-americano.
A descoberta sucessiva de novos campos do pré-sal demandam cada vez mais capital da Petrobrás, a qual não pode, por isso, desviar nenhum recurso para investir na refinaria de Pasadena, cuja capacidade de refino permanece em torno de 100 a 120 mil barris por dia. Mas quando o presal começar a jorrar, daqui a poucos anos, o dinheiro deixará de ser um problema para a Petrobrás, que precisará de bons lugares para investir, e nada melhor que uma refinaria que ela já tem, no coração do maior mercado do mundo.
O problema principal da refinaria de Pasadena, portanto, foi a descoberta do pré-sal, conforme a própria Petrobrás respondeu, em fevereiro de 2013. Só que esse problema também será a solução.

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Refinaria de Pasadena (Fonte da foto).