terça-feira, 25 de novembro de 2014

Os riscos de beber a água com poluentes do Sistema Cantareira

Postado em 24 nov 2014
Alckmin inaugura o volume morto no Cantareira
Alckmin inaugura o volume morto no Cantareira

Recentemente, a Sabesp divulgou uma nota sobre a qualidade da água da reserva técnica do Sistema Cantareira, o volume morto, que está sendo usado para abastecer a região metropolitana de São Paulo. Como em toda a novela da crise hídrica, a população não está sabendo do que está em curso.
Nesse caso, especificamente, um decreto que garante que os cidadãos sejam informados a respeito de riscos ambientais e para a saúde pública está sendo desrespeitado. Na nota, foram apresentados resultados de monitoramento dos reservatórios Jacareí e Atibainha.
Nos ensaios foram observados parâmetros inorgânicos (segundo a Cetesb, os metais, pesados ou não, e produtos químicos resultantes de processos industriais) e orgânicos. Para parâmetros inorgânicos foram encontrados chumbo, cádmio e mercúrio.
Entre os orgânicos foram encontrados poluentes como aldrin, dieldrin – pesticidas produzidos unicamente pela Shell e banidos do mercado – endosulfan e ascarel. Todos os índices apresentados estão abaixo dos limites da Resolução 375/2005 do Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conama. A Cetesb considerou boa a qualidade.
A resolução do Conama 375/2005 estabelece a classificação de corpos d’água para diversos fins, entre eles a produção hídrica para abastecimento considerando os princípios da precaução e da prevenção.
Ressalta ainda a resolução que a Convenção de Estocolmo deve ser considerada, em especial a eliminação dos chamados poluentes orgânicos persistentes, POPs. A Convenção de Estocolmo é um tratado internacional assinado em 2001 por mais de 150 países, dentre eles o Brasil.
Os POPs são compostos que resistem à degradação e possuem alto poder de bioacumulação. São pesticidas, fluidos elétricos e subprodutos oriundos de incineração. Os danos à saúde causados pelos POPs vêm de sua alta toxicidade.
Os efeitos negativos nas funções hepática, renal e cardiovascular são conhecidos. O risco da sujeira da água leva em conta tempo de exposição, distinção de faixas etárias e respectivas particularidades da saúde de cada indivíduo. Crianças e velhos são mais vulneráveis.
Assim como pessoas que exageram na dose. As pessoas estão cientes disso? Pois deveriam. Em 2004, o governo brasileiro promulgou o Decreto Federal 5098, que dispõe sobre o Plano Nacional de Prevenção, Preparação e Resposta Rápida a Emergências Ambientais.
A orientação do decreto é que o Plano de Prevenção deve ser executado de forma participativa e integrada pelos governos estaduais e municipais. O decreto manda que o cidadão seja informado sobre eventuais riscos ambientais e à saúde pública.
A Cetesb realizou no ano de 2010 um curso para técnicos de vários países da América Latina para atendimento de emergências em casos de acidentes com POPs. O curso foi além e tratou da gestão socioambiental de risco.
A presença de POPs abaixo dos limites não é caso de emergência, mas deixar de alertar o consumidor sobre a presença de traços de poluentes no volume morto é omissão da função pública.
A Sabesp esconde os possíveis danos embutidos na água do volume morto em um novo capítulo do acúmulo de erros na gestão hídrica.

A corrupção e o sucesso do partido espanhol “Podemos”, fenômeno da esquerda europeia (Postado em 24 nov 2014por : Mauro Donato)

Após uma série de protestos organizados pelas redes sociais que reivindicavam mudanças na política e na sociedade por considerarem que nenhum dos partidos políticos os representavam, um nome surge carregando o grito das ruas (em especial o “basta de corrupção”). Jovens desiludidos com o sistema político e por tabela desconfiando de todos os partidos buscam algo totalmente novo, desinfetado, e afirmam que apostarão seus votos ali. Já em seus primeiros meses de vida a promessa lidera as itenções de voto, deixando as grandes legendas para trás.
Estamos em um Brasil fictício de 2013 em que a REDE de Marina Silva vingou e arrebanhou a massa? Não. Espanha 2014, mundo real. O PODEMOS espanhol em seu primeiro ano conquistou cinco cadeiras no Parlamento europeu e em uma recente pesquisa de intenção de voto ficou em primeiro lugar, por ecoar fortemente os anseios que vêm desde o movimento Indignados naquele país.
Originado na insatisfação com o bipartidarismo e com os casos de corrupção no país, o PODEMOS se apresentou não como um partido mas como um “novo método participativo, pensado para transformar a indignação em mudança política.” O responsável pela organização, o ativista social Miguel Urbán, sempre mostrou sua preocupação com a corrupção (que viria como chaga número um) mas as questões que há décadas assolam a Espanha como o alto desemprego, o aumento da pobreza e as consequências das medidas de austeridade também são tratados.
O movimento trabalha com a meta de modificar até o tão festejado futebol espanhol que sofre de alguns problemas similares aos nossos e propõe o combate a distribuição desigual do dinheiro da TV entre os clubes, um teto salarial para que os mais ricos não se distanciem tanto dos mais pobres e obrigatoriedade do estudo para os jogadores da primeira divisão. Enfim, um sacode geral.
Mas um movimento ou partido que tem como carro-chefe da plataforma o combate à corrupção é algo que se deve ser levado à sério? Um partido que se intitula incorruptível, ao se desmembrar em inúmeras faces para atender aos acordos políticos, composto por seres humanos, levará quanto tempo para ter um aliado pego em flagrante?
Política sem corrupção é uma utopia como desejar o mundo sem corrupção, ou a raça humana composta de 100% de seus espécimes incorruptíveis (esse grito mesmo que ouve-se hoje – ‘começar do zero’ – como imaginam fazer isso? Alteração genética?)
Corrupção sempre existiu e por isso a propaganda feita por seus combatentes na maioria das vezes se apoia em falácias. Por aqui ouvimos até que é algo endêmico, que em nenhum lugar do mundo há tanta corrupção, que nenhum partido ou governo foi mais corrupto do que o atual, que nunca se roubou tanto, que é preciso tirar todo mundo que está aí e começar do zero, que isso, que aquilo.
Não se combate a corrupção visando sua extinção. Ela é algo universal, atemporal e inerente à existência do polígono dinheiro/poder/benefícios/ser humano. Sempre existirá. Deve-se criar mecanismos que dificultem sua prática e punições que imponham receio e que sejam de fato cumpridas. Desejar o fim da corrupção assemelha-se a desejar a felicidade eterna, a perfeição.
Não é possível, ela é um fator humano. E as leis não evitam que algo seja feito, e sim determinam qual o preço a se pagar por tal comportamento. Uma vez que sejam duras e cumpridas com rigor, colaboram para atenuar, já que o contrário transforma práticas em epidemia.
Pode-se torcer muito para que um país tenha sucesso nessa empreitada (e por isso não desdenho das intenções do PODEMOS) e observar quais medidas passem a funcionar. Penas duras, por exemplo, num país em que a cultura da corrupção já está arraigada podem não ser necessariamente multas altas. O ditado de que o bolso é a parte mais sensível do ser humano é levado ao pé da letra mas multas muito altas também colaboram para a indústria da corrupção (vale mais a pena pagar para ao fiscal, por exemplo).
O discurso contra a corrupção sempre cai num vazio dada sua hipocrisia. Raros são os casos e as pessoas que não se deixam corromper. A diferença está na esfera de atuação de cada um. Há aqueles que não querem sujar as mãos por pouco e envolvem-se nos grandes “acordos” proporcionais às suas posições hierárquicas e há aqueles que não têm acesso a grandes esquemas mas que no dia-a-dia admitem um gato na instalação da TV a cabo, uma sonegaçãozinha de imposto, um suborno “sem grandes consequências”.
Se diferem na dimensão, as justificativas são similares na vitimização. “Fui coagido a participar” é o que se ouve dos grandes tubarões (como estivessem num beco sem saída e não em um saguão chamado ganância). Já o “todo mundo faz, porque serei o honesto trouxa?” é o argumento dos pequenos contraventores e assim cria-se toda uma cultura.
Então quem pode mesmo pintar o rosto de verde-amarelo e sair acusando os outros de ladrões, corruptos, dizer-se cansado de roubalheira, demonstar indignação?
Penas severas para corruptos e menos hipocrisia, por favor. Quer o fim da corrupção? Seja honesto

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O pensamento de Darcy Ribeiro sobre o negro brasileiro by Diario do Centro do Mundo

Publicado no Pragmatismo Político.
Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro foi um dos intelectuais que melhor entenderam o negro no Brasil.
Para Darcy Ribeiro, a possibilidade de existência de uma democracia racial está vinculada com a prática de uma democracia social, onde negros e brancos partilhem das mesmas oportunidades sem qualquer forma de desigualdade.
Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, leia abaixo trechos do livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, uma das obras mais relevantes da história do Brasil.
Darcy Ribeiro
CLASSE E RAÇA
A distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.
Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que deveria ser. Não foi assim no passado. As lutas mais longas e cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição.
Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para a reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos quilombos, que se multiplicaram aos milhares. Eram formações protobrasileiras, porque o quilombola era um negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza brasileira, e, também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.
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Mas a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em função de sua total desafricanização. A primeira tarefa do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para poder comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani.
Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões de negros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período colonial, constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno. Sua abolição, a mais tardia da história, foi a causa principal da queda do Império e da proclamação da República. Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento da força de trabalho, substituindo a mão de obra escrava por imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente e exportável a baixo preço.
O negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha trabalhando no eito, sob a mais dura repressão –inclusive as punições preventivas, que não castigavam culpas ou preguiças, mas só visavam dissuadir o negro de fugir– só queria a liberdade. Em consequência, os ex-escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar, para viverem livres como se estivessem nos quilombos, plantando milho e mandioca para comer. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se substancialmente. Menos pela supressão da importação anual de novas massas de escravos para repor o estoque, porque essas já vinham diminuindo há décadas. muito mais pela terrível miséria a que foram atirados. não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra.
As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era facilmente substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa.
A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente, discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontraram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos.
BRANCOS VERSUS NEGROS
Examinando a carreira do negro no Brasil, se verifica que, introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que, embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continua sendo principalmente o de animal de serviço.
Enquanto escravo poderia algum proprietário previdente ponderar, talvez, que resultaria mais econômico manter suas “peças” nutridas para tirar delas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um negro desgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto da propriedade, vivendo do produto de sua própria roça, devotado a tarefas mais leves requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já não sendo de ninguém, se encontrava só e hostilizado, contando apenas com sua força de trabalho, num mundo em que a terra e tudo o mais continuava apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma exploração que não era maior que dantes, porque isso seria impraticável, mas era agora absolutamente desinteressada do seu destino. Nessas condições, o negro forro, que alcançara de algum modo certo vigor físico, poderia, só por isso, sendo mais apreciado como trabalhador, fixar-se nalguma fazenda, ali podendo viver e reproduzir. O débil, o enfermo, o precocemente envelhecido no trabalho, era simplesmente enxotado como coisa imprestável.
Depois da primeira lei abolicionista –a Lei do Ventre Livre, que liberta o filho da negra escrava–, nas áreas de maior concentração da escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras que, já não sendo coisas suas, não se sentiam mais na obrigação de alimentar. Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre (1871), fundaram-se nas vilas e cidades do Estado de São Paulo dezenas de asilos para acolher essas crianças, atiradas fora pelos fazendeiros. Após a abolição, à saída dos negros de trabalho que não mais queriam servir aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos das fazendas. Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram a se deixar aliciar para o trabalho sob as condições ditadas pelo latifúndio.
Com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação e a superação consequente da auto-suficiência das fazendas, que passaram a concentrar-se nas lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café, do algodão e, depois, no plantio de pastagens artificiais), outros contingentes de trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar a massa da população residual das vilas. Era agora constituída não apenas de negros, mas também de pardos e brancos pobres, confundidos todos como massa dos trabalhadores “livres” do eito, aliciáveis para as fainas que requeressem mão-de-obra. Essa humanidade detritária predominantemente negra e mulata pode ser vista, ainda hoje, junto aos conglomerados urbanos, em todas as áreas do latifúndio, formada por braceiros estacionais, mendigos, biscateiros, domésticas, cegos, aleijados, enfermos, amontoados em casebres miseráveis. Os mais velhos, já desgastados no trabalho agrícola e na vida azarosa, cuidam das crianças, ainda não amadurecidas para nele engajar-se.
Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela industrialização, ameaça não romper com a superconcentração da riqueza, do poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação de pautas diferenciadoras só explicadas historicamente, tais como: a emergência recente do negro da condição escrava à de trabalhador livre; uma efetiva condição de inferioridade, produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por séculos sem nenhuma satisfação compensatória; a manutenção de critérios racialmente discriminatórios que, obstaculizando sua ascensão à simples condição de gente comum, igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele obter educação e incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados. As taxas de analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade dos negros são, por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade brasileira em cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia racial que integrasse o negro na condição de cidadão indiferenciado dos demais.
Florestan Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos esse objetivo, não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia. Por um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte da civilização moderna”.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Elis Regina - Como Nossos Pais

Elis Regina - Trem azul

Elis Regina - Corsário (Original)

Retrato em Branco e Preto (Chico Buarque)

Por que obras faraônicas não resolvem o problema do abastecimento de água em SP


Postado em 19 nov 2014
A represa Jaguari, que integra o Sistema Cantareira
A represa Jaguari, que integra o Sistema Cantareira

Com os reservatórios do Sistema Cantareira definhando a cada dia surgem planos mirabolantes para que os paulistas se livrem do desabastecimento. Todos caríssimos. Enquanto isso, a vegetação que garante vida aos nossos mananciais vai sendo destruída.
Geraldo Alckmin bateu à porta da presidente Dilma com um projeto de abastecimento de água debaixo do braço. Quer tocar oito obras de médio e longo prazo para incrementar a capacidade dos reservatórios em quase 13 metros cúbicos por segundo. Pediu ao Governo Federal nada menos que R$ 3,5 bilhões para tocar esse pacotão de obras hídricas que Alckmin chama de estruturantes. Inclui a interligação de várias represas e a construção de mais reservatórios.
Por outro lado, uma associação de 43 municípios e trinta empresas paulistas conhecida como Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí – ou simplesmente Consórcio PCJ – anunciou que pretende investir na dessalinização da água do mar para encher os reservatórios do Sistema Cantareira.
Para trazer água dessalinizada até a região do Cantareira os técnicos do Consórcio PCJ fizeram muitas prospecções. Cinco possibilidades foram analisadas. Chegaram à conclusão de que Bertioga, no litoral paulista, seria o lugar ideal para captá-la e fazer a dessalinização. Trata-se – segundo o consórcio – do caminho mais curto até a cabeceira do rio Piracicaba, de onde a água seria distribuída para todo o Sistema Cantareira. O trajeto total fica em pouco menos de cem quilômetros de adutoras, embora haja um desnível de quase 700 metros a ser vencido. Ali será necessário o bombeamento da água.
De acordo com o Consórcio PCJ esse esquema todo poderá deixar os reservatórios do Cantareira com 80% da sua capacidade, no mínimo. Os outros 20% seriam destinados a uma reserva para abrigar as águas das chuvas.
A empreitada total de dessalinização da água do mar e transporte até o Sistema Cantareira sairá ainda mais caro que o grandioso projeto de Alckmin. Diz uma notícia no site da associação de prefeituras e empresas paulistas: “O Consórcio estima que o projeto como um todo, com a implantação de uma usina de dessalinização em Bertioga (SP) e a construção de adutoras que trariam a água até o Reservatório Jaguari/Jacareí do Cantareira, custaria algo em torno de R$ 6,1 bilhões. Esses números necessitam de estudos de detalhamento técnico financeiro”.
Tudo isso parece apenas remediar o principal motivo pelo qual a região enfrenta a maior seca já vista na história: o desmatamento de florestas nativas e matas ciliares – aquelas que circundam nascentes de rios e mananciais. Em nenhum momento nossos governantes cogitaram a possibilidade de reflorestamento de áreas desmatadas próximas aos rios e reservatórios. Iria sair muito mais barato.
Como se sabe, conservar matas nativas ao redor de bacias hidrográficas é essencial para garantir a perenidade da água, mesmo em períodos de estiagens prolongadas. Primeiro porque as florestas retiram umidade do ar para jogá-la nos mananciais na forma de chuvas. Depois, porque essa vegetação impede o assoreamento dos reservatórios e os deslizamentos de encostas.
De acordo com um estudo elaborado pela ONG Fundação SOS Mata Atlântica a cobertura de floresta nativa da região do Cantareira está pior do que os pesquisadores imaginavam. “Hoje restam apenas 488 quilômetros quadrados (21,5%) de vegetação nativa na bacia hidrográfica e nos 2 270 quilômetros quadrados do conjunto de seis represas que forma o Sistema Cantareira”, informa Marcia Hirota, diretora-executiva da Fundação SOS Mata Atlântica.
O tamanho do estrago é grande: dos mais de cinco mil quilômetros de rios que formam os reservatórios só 23,5% têm mata nativa. Outros 76,5% já não têm mata ciliar, ocupada que está pelo uso humano, principalmente agricultura, pecuária e silvicultura.
Ainda de acordo com o estudo, Minas Gerais é o estado que historicamente mais tem dizimado a Mata Atlântica. Detalhe: Minas abriga as principais nascentes que alimentam a região do Cantareira.
Em resumo: destruímos toda uma rede natural que permite a manutenção dos mananciais. E tentamos fugir do desabastecimento construindo mais reservatórios ou planejando operações megalomaníacas e onerosas de transporte de água dessalinizada a longas distâncias.
O desafio, agora, segundo Marcia Hirota, da SOS Mata Atlântica: “Proteger o que resta da Mata Atlântica e manter, com rigor, o monitoramento e a fiscalização dessas áreas para evitar mais desmatamentos”. O governo bem poderia investir na proteção das florestas nativas. E no reflorestamento também.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Publicado em 17/11/2014 Depois da Lava Jato vem o Berlusconi ! É isso ? Não basta revirar pedra e pedra.

O Conversa Afiada reproduz brilhante reflexão do Saul Leblon na Carta Maior:

MÃOS LIMPAS; E DEPOIS, BERLUSCONI?


Na Itália, em 1992, cerca de 1.300 réus foram condenados. Cinco grandes partidos desapareceram. O que emergiu, porém, não foi uma república virtuosa.


por: Saul Leblon


Aplausos: o combate à corrupção no Brasil finalmente alcançou a esfera dos corruptores.


A operação da PF desfechada nesta sexta-feira para desbaratar o esquema de propinas na Petrobrás incluiu 25 prisões de graúdos personagens do mundo empresarial.


Entre eles, presidentes, diretores e altos funcionários de grupos como a Camargo Corrêa, OAS, Queiroz Galvão, ademais de um ex-diretor da Petrobras, demitido pela presidenta Dilma Rousseff juntamente com Paulo Roberto Costa, em 2012.


O que se assiste com certo ar de incredulidade ainda, é um primeiro passo daquilo que qualquer país disposto a atacar de frente a corrupção tem que transformar em rotina.


Ou seja, atravessar a porta que separa o sabido do nunca escancarado.


Lá dentro guardada a sete chaves está a contabilidade paralela do capital privado, origem e destino dos malfeitos em torno dos quais orbitam personagens de um sistema eleitoral degenerado, e burocracias públicas carcomidas.


Que tenha vindo para ficar, são os votos.


Sem ilusões, porém.


O combate policial embora seja um passo importante é insuficiente.


Corrupção não é uma singularidade capitalista.


Ou esquerdista.


Ela é endêmica em sociedades dissociadas da transparência que só um salto na democracia participativa   –que atinja organicamente os centros de decisão do Estado, da vida das empresas e da mecânica eleitoral— pode realmente propiciar.


Caso contrário, a história se repete.


Não raro, como tragédia, na forma de um desencanto político que frequentemente  instala no poder versões extremadas  daquilo que se pretendia extinguir


É oportuno lembrar.


A ‘Operação Mãos Limpas’ realizada na Itália, em 1992, figura como uma das  principais referências no combate à endogamia entre o dinheiro privado e a política.


Lá como cá o núcleo dos ilícitos começava nas distorções de financiamento do sistema eleitoral.


E terminava sabe-se onde.


A devassa ocupou dois anos e expediu 2.993 mandados de prisão; 6.059 figurões tiveram as contas e patrimônios dissecados  –entre eles, 872 empresários  e 438 parlamentares, incluindo-se  quatro  ex- primeiros-ministros.


Não terminou em pizza.


Cerca de  1.300  réus foram condenados; apenas 150 absolvidos.


Não faltaram suicídios, assassinatos, fugas e humilhações.


O furacão jurídico destruiu a Primeira República Italiana.


Cinco grandes partidos, incluindo-se a Democracia Cristã, o Partido Socialista e o Partido Comunista, o maior e mais estruturado do ocidente, viraram poeira da história.


Desapareceram.


O espaço que se abriu, porém,   não encontrou forças mobilizadas, tampouco projetos organizados e nem propostas críveis  para catalisar a revolta e a desilusão da sociedade.


O passo seguinte não foi o surgimento de uma república emancipadora e revigorada.


As causas do anticlímax   remetem a décadas antes.


O sistema partidário italiano, condenado na tomografia da corrupção, na verdade já se descolara da representação da sociedade há muito tempo.


No campo da esquerda, o caso do PCI é o mais dramático pela importância e a influência que exerceu em toda a luta progressista mundial.


As raízes da deriva remetiam a uma discutível interpretação de Gramsci.


Não um erro teórico.


Não uma questão acadêmica.  Uma leitura política seletiva, conveniente à orientação caudatária da Rússia aos PCs da Europa então.


Qual seja?  Não afrontar o poder de classe no território da economia e da luta política de massa.


Optou o PCI, então, com raro talento, diga-se, pela construção de uma hegemonia fortemente vincada em pilares intelectuais e culturais provedores de prestígio e influência.


Uma hegemonia, mas pela metade: 50% de Gramsci; 50% de rendição histórica ao capital.


Uma hegemonia invertebrada do ponto de vista da organização para o exercício efetivo do poder.


Aos poucos, abriu-se um fosso.


De um lado, reinava a indiscutível qualidade intelectual e artística da esquerda comunista italiana, respeitada em todo o mundo.


De outro, transformações objetivas em curso.


Uma classe trabalhadora muito distinta daquela iluminada nos filmes do neo realismo de Rosselini e De Sica era modelada nos rigores de um capitalismo em transformação, para pior.


Quando a ‘Mãos Limpas’ atingiu os partidos, Tatcher  já atingira letalmente os pisos salariais  e os direitos sociais na Europa, a social democracia já flertava com os albores neoliberais  e o Muro de Berlim caíra três anos antes.


Esmagada pela compressão salarial interna e externa, a classe trabalhadora italiana tornara-se, ao mesmo tempo, refém da massificação do consumo e da dissolução das referências históricas.


O distanciamento intelectual entre a hegemonia cultural do PCI e aquilo que as redes de comunicação, sobretudo a andrajosa qualidade da televisão italiana, expeliam diuturnamente cavou um fosso regressivo.


Deu-se então o que se sabe.


O que emergiu no rastro do Mãos Limpas não foi uma república virtuoso e sim o horror na forma de uma liderança bufa, que substituiu a hegemonia de Gramsci pela indigência de sua rede de televisão.


Tragicamente, o que se pretendia combater, ganhou impulso avassalador.


A independência entre o poder político e o poder econômico   desapareceu.


Um país desprovido de partidos fortes, desiludido de suas lideranças virou refém de Il Cavaliere, um capo  despudoramente reresentativo do vazio chocado em uma sociedade atomizada, feita de estilhaços humanos fatiados pelo consumo e por um sistema de comunicação excretor de valores afins.


Não foi um espasmo ou um ponto fora da curva.


Silvio Berlusconi e sua fortuna de US$ 6 bilhões ficaram nove anos no poder, em três mandatos subsequentes,   entre 1994 e 2011.


Foi o primeiro ministro  que mais tempo ficou no poder da Itália no pós-guerra.


Sua rede de televisão substituiu o PCI, o PSI, a DC e construiu a hegemonia sobre as massas italianas da qual os comunistas se descuidaram.


A tragédia encerra lições à esquerda mundial.


Mas de forma dilacerante a do Brasil.


A toda a esquerda; ao PT em especial.


A ação policial contra a corrupção é importante; deve ser ininterrupta; não pode ser seletiva.


Menos ainda míope a ponto de excluir de seu foco –  reiteradamente— certos episódios exclamativos.


Tão exclamativos que chamaram a atenção da justiça  na Suíça, mas nunca aguçaram a perspicácia da  PF brasileira ou dos combativos  ‘moros’ de plantão.


Caso do propinoduto no metrô do PSDB em São Paulo, por exemplo.


Para citar apenas um caso, em uma dúzia.


Investigue-se.


Tudo.


Mas o passar a limpo não vai  criar um sistema político regenerado, nem impedir que ele continue a regredir em direção a coisa pior.


Sem partidos fortes, com  desassombro programático para catalisar a sociedade e resgatar a luta pelo desenvolvimento,  a anomia que favorece as excrescências aguarda o país na  esquina.


Berlusconis, bolsonaros, lobões, terceiras vias diversas, oportunistas de bico longo e outras versões de morbidez histórica estão à espreita.


Formam padrões recorrentes na borra da dissolução, quando o velho ainda não morreu e o novo não tem força para emergir.


A história, de qualquer forma, aperta o passo no Brasil.


E não por aceleração da iniciativa progressista.


Tampouco porque o novo está prestes a emergir.


Mas há uma certeza, cada dia mais evidente: a esquerda não tem mais o direito de perguntar que horas são.


A pergunta não é quanto falta, mas quanto tempo ainda resta.


Quanto tempo resta para as lideranças progressistas tomarem consciência de que precisam sentar, conversar, limar sectarismos e  firmar uma agenda de rua, para sustentar e influenciar o governo eleito democraticamente no longínquo 26 de outubro de 2014.


Antes que seja tarde

sábado, 15 de novembro de 2014

“Injusto é pagar imposto no Brasil”: a 1ª reportagem da série do DCM sobre a sonegação da Globo PARTE I


Postado em 15 nov 2014
globo2002

Com esta matéria, inauguramos a série sobre o processo de sonegação de impostos da Globo envolvendo os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. É o terceiro projeto financiado pelos nossos leitores através de crowdfunding no site Catarse. O repórter Joaquim de Carvalho está apurando o caso em várias cidades. No final, teremos um documentário. Fique ligado.

Em um dos momentos curiosos da eleição deste ano no Rio de Janeiro, a apresentadora da TV Globo Mariana Gross, após entrevistar ao vivo o candidato a governador Antony Garotinho, olha para a câmera, o que significa se dirigir aos telespectadores, e diz:
- A Globo não sonega. A Globo paga seus impostos.
Era a resposta a um comentário do candidato:
- A Globo, por exemplo, é acusada de sonegar milhões em um esquema envolvendo laranjas. É uma acusação. Pode não ser verdade, eu até acredito que seja, mas é a minha opinião.
O caso levantado na entrevista remete à assinatura do contrato de concessão de licença para a transmissão da Copa do Mundo de 2002, assinado no dia 29 de junho de 1998. De um lado, a ISMM Investments AG, da Suíça, representante da Fifa. De outro, a TV Globo e Globo Overseas, uma empresa holandesa controlada pela família Marinho. O valor do contrato era de 220,5 milhões de dólares, o equivalente hoje a 600 milhões de reais e dava direito à transmissão de 64 jogos da Copa e de todos os eventos relacionados.
Oito anos e duas Copas depois, o auditor fiscal Alberto Sodré Zile, da Delegacia da Receita Federal do Rio de Janeiro, encerrou uma investigação sobre a aquisição dos direitos de transmissão pela Globo e concluiu:
“A Globo sonegou impostos, mediante fraude, no montante de 183 milhões de reais, em valores atualizados em 2006. Por considerar a fraude uma agravante da sonegação, aplicou multa em percentual dobrado, no valor de 274 milhões de reais. Com os juros de mora, calculados até 29 de setembro de 2006, Zile entregou à Globo uma conta de 615 milhões de reais.”
O auditor fiscal fez ainda uma representação para fins penais, que deveria ser encaminhada ao Ministério Público. Nela, como um anatomista diante de um cadáver, descreve cada pedaço de um quebra cabeças que revela uma intrincada engenharia financeira.
“Em um ano e meio, diversas operações societárias foram engendradas para que, ao fim, a TV Globo e a Globosat pudessem transmitir a Copa em que o Brasil se sagrou pentacampeão. Foram seis alterações sociais e duas empresas constituídas e destituídas neste curto espaço de tempo”, escreve.
Segundo ele, as operações tinha “um único objetivo”: esconder das autoridades brasileiras a aquisição dos direitos de transmissão da Copa do Mundo pela TV Globo e, com isso, “fugir da tributação mais desfavorecida”.
Alberto Zile reconhece o direito das empresas de buscar reduzir o pagamento de impostos. Mas diz que o chamado “planejamento fiscal” tem um limite: a fraude. E ele cita o caso da empresa Empire, constituída nas Ilhas Virgens Britânicas.
A Empire não tinha uma câmera sequer, muito menos microfone ou antena de transmissão, mas até alguns meses antes do início da Copa de 2002 eram dela os direitos de transmissão de um dos maiores eventos esportivos do planeta.
A TV Globo pagou pela Empire cerca de 221 milhões de dólares, mesmo sabendo que a Empire, além de não contar com equipamentos, não tinha sequer um escritório. Sua sede era uma caixa postal nas Ilhas Virgens Britânicas, a PO Box 3340, compartilhada com a Ernst & Young Trust Corporation (BVI) Ltd.
Na investigação, o auditor descobriu que, por trás da Empire, estava a própria TV Globo. Em sua defesa, o grupo sustentava que a compra da Empire fazia parte de uma estratégia de ampliação dos negócios da Globo no Exterior. Mas a farsa caiu por terra quando a Receita Federal fez um questionamento por escrito sobre a propriedade da Empire.
Documento na Receita Federal
Documento da Receita Federal

O advogado José Américo Buentes admitiu: “Existe vínculo indiretamente”, porque os controladores da Globo e da Empire sempre foram as mesmas pessoas. Para o auditor fiscal, tudo não passou de “simulação”.
O teatro que o auditor fiscal Zile descreve tem mais três capítulos: um no Brasil, outro no Uruguai e mais um na Ilha da Madeira. Depois de comprar a Empire, a Globo repassou as cotas da empresa a outra companhia, criada por ela no Rio de Janeiro, a GEE Eventos Esportivos Ltda, que, a exemplo da empresa das Ilhas Virgens, não tem estrutura para gravar em vídeo uma só entrevista, muito menos transmitir a Copa do Mundo. É empresa de fachada.
Nas vésperas da abertura da Copa de 2002, a Globo fechou a GEE e dividiu com a Globosat (canal fechado) os direitos de transmissão. O dinheiro usado para pagar o ISMM, representante da Fifa, saiu da própria Globo, via uma simulação de empréstimo a uma empresa do Uruguai, a Power, e outra simulação de empréstimo com uma empresa chamada Porto Esperança, na Ilha da Madeira.
Nos dois casos, empresas credoras e devedoras são controladas pelas mesmas pessoas: os irmãos Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho.
Um trecho da representação contra os filhos de Roberto Marinho diz:
“De fato, as operações arroladas, de forma sintética, no item 1.3, dão a clara ideia de que vários dos atos praticados pela fiscalizada estavam completamente dissociados de uma racional organização empresarial e, consequentemente, de que a aquisição dos direitos de transmissão, por meio de televisão, da competição desportiva de futebol internacional, com intuito de fugir da tributação mais desfavorecida.”
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Com a engenharia financeira, a Globo deixou de pagar à época o tributo pela aquisição dos direitos de transmissão: 15% sobre valor total, caso o negócio fosse feito diretamente com a Suíça, ou 25% caso se concretizasse nas Ilhas Virgens Britânicas, como a rigor se concretizou. As alíquotas são diferentes para locais considerados paraísos fiscais, como é o caso das Ilhas Virgens.
A Globo recorreu da autuação junto ao Conselho do Contribuinte que, por unanimidade, deu razão ao auditor fiscal.
Algumas semanas depois, quando o processo estava pronto para ser remetido ao Ministério Público Federal, que teria a prerrogativa para denunciar criminalmente os irmãos Marinho, uma funcionária da Receita Federal interrompeu seu período de férias para entrar na Delegacia e levar embora toda a documentação.
Essa funcionária foi presa, mas com a ajuda de uma banca de cinco advogados, conseguiu habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, numa decisão que tem, entre outras, a assinatura do ministro Gilmar Mendes.
Dois especialistas tributários que entrevistei nesta semana falaram sobre o caso da sonegação, sem que soubessem os nomes dos envolvidos. Ambos consideraram os fatos graves, mas disseram que o risco dos culpados serem punidos é zero.
Na Itália, até Sophia Loren passou uma temporada na cadeia pelo crime de sonegação fiscal. Nos Estados Unidos, a proprietária do Empire State passou uma temporada presa por deixar de pagar impostos. Recentemente, na Alemanha, o presidente do Bayern foi condenado pelo mesmo crime.
No Brasil, o Código Tributário Nacional, de 1969, dá ao sonegador a chance de se acertar com o Fisco até a abertura do processo na Receita Federal. O Código está em vigor, mas, nesse ponto, virou letra morta, em razão de sucessivas decisões judiciais que estenderam a extinção da punibilidade até a aceitação da denúncia pela Justiça.
Agora, uma corrente que já coleciona algumas vitórias nas cortes superiores, advoga que a punibilidade se extingue a qualquer tempo, desde que o sonegador pague seus débitos, mesmo com o processo judicial em andamento ou até concluído.
De alguns anos para cá, o Congresso Nacional aprovou algumas vezes o chamado Refis, uma colher de chá para o devedor. A justificativa é ajudar o contribuinte em dificuldade e elevar a arrecadação do Fisco. Com isso, multas e juros de mora caem quase a zero.
Em 2009, o Legislativo concedeu o Refis, e a Globo fez circular a versão de que quitou seu débito nessa leva de inadimplentes. A empresa nunca mostrou o DARF, e no processo da Receita Federal que vazou na internet consta apenas um DARF em nome da Globo. É no valor de R$ 174,50 e diz respeito a uma taxa de recurso.
O ex-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP, Raul Haidar, é um firme defensor da extinção da punibilidade a qualquer tempo. Perguntei a ele se esse entendimento não acaba por tornar a sonegação um crime que compensa. O contribuinte deixa de pagar e, apanhado no crime, adere a um Refis e segue a vida, sem pena, juros ou multa. Para quem paga impostos, é uma injustiça.
“Injusto é pagar impostos neste país”, disse ele, encerrando a entrevista.
Para o atual presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-SP, Jarbas Machioni, a extinção da punibilidade depois de iniciado o processo na Receita, é uma norma, de fato, injusta.
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No caso da sonegação de impostos sobre o direito de transmissão da Copa de 2002, não são apenas os ventos do Judiciário que sopram a favor da Globo. O caso era desconhecido até que uma mão invisível vazou os primeiros papéis do processo na Justiça, sete anos depois.
Pressionado por entidades civis do Rio de Janeiro, o Ministério Público determinou a abertura de inquérito na Polícia Federal, que recebeu o número 926/2013, e para tocá-lo foi designado o delegado Rubens de Lyra Pereira. Seu currículo despertava algum otimismo sobre o desfecho da investigação. Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz mestrado e tem outras duas graduações em universidades públicas, Filosofia e Direito.
Na semana passada, fui procurá-lo para falar da investigação. Rubens foi transferido. Ele deixou a Delegacia Fazendária e foi trabalhar no plantão da Polícia Federal, num movimento que revela desprestígio. Seu sucessor no inquérito é Luiz Menezes, que estava viajando.
O chefe interino da Delegacia Fazendária, Rafael Potsch Andreata, não quis falar sobre o caso. “É sigiloso”, disse ele. O inquérito 926/2013 vai completar um ano, os fatos que deram origem à sonegação, dezesseis. A investigação realizada pelo auditor fiscal Alberto Sodré Zile terminou há oito anos e sua conclusão foi endossada pelo conselho que julgou o recurso da Globo:
- A fiscalização, em face dos fatos descritos, constatou a simulação e, então, afastou o ato aparente para viesse à tona o negócio real: não recolher o imposto de renda na fonte devido pelo pagamento, ao exterior, em razão da aquisição do direito de transmissão, por meio de televisão, de competições desportivas.
Com esta reportagem, começamos uma série sobre o caso da sonegação da Globo. Como mostra o relatório da Receita Federal, nosso ponto de partida, é um caso que se reveste de alto interesse público. Vamos procurar suspeitos e testemunhas, apurar o que houve nos paraísos fiscais e nos escaninhos do poder. Vamos dar nomes e mostrar o rosto que estão por trás de assinaturas de contratos, distratos, remessas de divisas, constituição de empresas.
Há quase 50 anos, em plena ditadura militar, a Globo foi acusada de buscar um sócio estrangeiro para montar a sua rede de televisão, o que era proibido na época. A prova de que havia essa sociedade oculta era uma escritura pela qual a Globo vendeu ao grupo Time-Life o prédio onde hoje funciona o seu departamento de jornalismo, na rua Von Martius, no Rio de Janeiro.
A escritura foi arrancada do livro de registro do 11º Ofício de Notas. Na época, o jornal O Estado de S. Paulo chegou a dar a notícia, e depois o assunto desapareceu da imprensa. De lá para cá, o número de publicações foi reduzido, e a Globo se consolidou como uma das maiores empresas de comunicação do mundo.
Com esse projeto, financiado pelos leitores do Diário do Centro do Mundo, trabalhamos com a firme convicção de que um expressivo segmento da sociedade decidiu escrever uma nova página na história da mídia.
Roberto Marinho e os filhos
Roberto Marinho e os filhos