terça-feira, 29 de abril de 2014

Quem desmoralizou o STF foi o próprio STF


Postado em 29 abr 2014
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Você pode discordar da porcentagem utilizada por Lula para definir o que foi o julgamento do Mensalão.
Lula falou em 80% de critérios políticos e 20% de critérios jurídicos.
O que não dá, a não ser que você seja um fanático antipetista, um caçador de petralhas, é discordar de que os juízes se pautaram muito mais pela política do que pela justiça em si.
O julgamento foi político do início ao fim. Você começa pelo empenho em juntar quarenta réus com um único propósito. Fornecer à mídia – visceralmente envolvida na politização do julgamento – a oportunidade de usar a expressão “Ali Babá e os quarenta ladrões”.
Outras coisas foram igualmente absurdas. Por que, em situações juridicamente semelhantes, Eduardo Azeredo do PSDB percorreu o caminho jurídico normal e os réus do Mensalão foram direto ao Supremo, sem chance, portanto, de outras instâncias?
E depois, como classificar a Teoria do Domínio do Fato, que dispensou provas para condenar?
E a dosimetria, pela qual, numa matemática jurídica abstrusa, condenados tiveram penas maiores do que o assassino serial da Noruega?
Num gesto cínico bizarro, o ministro Marco Aurélio de Mello disse que o STF é “apartidário” para rebater as afirmações de Lula.
Quem acredita nisso acredita em tudo, como disse Wellington. Um simples olhar para Gilmar Mendes – que até a jornalista Eliane Cantanhede num perfil classificou como tucano demais.
O STF se desmoralizou não porque Lula falou nos 80%, mas pelo comportamento de seus juízes.
Ou eles estavam zelando por sua honra e prestígio ao posar festivos ao lado de jornalistas “apartidários” como Merval Pereira e Reinaldo Azevedo, como se entre mídia e justiça não houvesse um problema de conflito de interesses?
E quando emergiram as condições em que Fux conquistou seu lugar no STF com o famoso “mato no peito” depois de uma louca cavalgada na qual se ajoelhou perante Dirceu?
A completa falta de neutralidade do STF se estenderia para além do julgamento. Como classificar a perseguição de Joaquim Barbosa a Dirceu e a Genoino?
E a tentativa de negar o direito aos chamados recursos infringentes fingindo que a Constiuição não previa isso? Apartidarismo?
Um argumento falacioso que se usa a favor do STF é o seguinte: mas foi o PT quem tinha indicado a maioria dos juízes.
Ora, então indicou mal, a começar por Barbosa, nomeado por Lula. Eles foram antipetistas estridentes a despeito de terem sido nomeados pelo PT.
Seria horrível se agissem como petistas, é claro. Mas foi igualmente horrível terem se comportado como antipetistas.
O que a sociedade queria, ali, era uma coisa chamada neutralidade, uma palavra muito usada hoje por conta do Marco Civil da internet.
Outro argumento desonesto é o que estica os dedos acusatórios para Lewandowski. Ora, Lewandowski não emplacou uma. Foi voto vencido sempre que se contrapôs à manada.
Entre os juízes da primeira leva, foi o único que se salvou, e isto provavelmente vai ficar claro quando a posteridade estudar o Mensalão.
Se pareceu petista foi porque o ar estava viciadamente antipetista. Era como no passado da ditadura: num ambiente tão anticomunista, todo mundo era comunista.
O STF é hoje um arremedo de corte suprema, mas por culpa sua, e apenas sua.
O Mensalão deixou claro, ao jogar luzes sobre o STF, que uma reforma na Justiça é urgente para que o Brasil possa avançar.
Paulo Nogueira
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

‘Foi meu segredo’: Eliana Paiva, filha de Rubens, fala ao DCM sobre sua prisão aos 15 anos na ditadura

Eliana fala à Comissão da Verdade
Eliana fala à Comissão da Verdade

Eliana Paiva passou décadas sem contar nada a respeito dos dias em que passou presa, quando tinha apenas 15 anos. “Acho que esqueci o que aconteceu, deixei pra lá, sabe?”, diz ela.
Era janeiro de 1971 e seu pai, Rubens Paiva, deputado cassado, tinha sido preso no dia anterior. Era um engenheiro civil da classe média paulistana, socialista, jovem, empreendedor e bon vivant. Mas uma carta e uma amizade foram suficientes para ser considerado suspeito, preso e espancado até a morte.
Filha e pai não se encontraram na prisão. Aliás, nunca mais se viram. Provavelmente, ele morreu naquele mesmo dia em que ela foi presa, vítima de torturas. Foi dado como desaparecido e seus restos mortais nunca foram encontrados. “Só recentemente é que comecei a contar algumas coisas que eu não comentava nem para a minha família”, diz ela. “Ninguém soube da minha prisão, foi um segredo que guardei por 40 anos e que só revelei na Comissão da Verdade”.
Nessa entrevista exclusiva ao DCM, Eliana recupera as suas lembranças daqueles dias.
Como era o clima na família antes da prisão do seu pai?
A gente não tinha muitas preocupações. Meu pai, que era deputado federal, esteva na primeira lista de cassados, mas, apesar de estar ligado ao partido socialista, era um burguês, de 34 anos, com cinco filhos, engenheiro civil. Nem ele, nem seus amigos, achavam que a repressão ficaria tão séria. Todos eles, intelectuais de esquerda, como o Darcy Ribeiro, o Valdir Pires e o Luís Fernando Bocayuva achavam que os militares eram gorilas, burros, ignorantes, não acreditavam no poder deles. Eram os milicos contra a intelectualidades brasileira. Achavam que isso não ia adiante. Ele se divertia muito, tinha bom humor, levava tudo na brincadeira. Era um grupo muito bom, uma época das mais férteis da cultura brasileira.
Mas seu pai exilou-se antes de ser preso…
Sim, depois do golpe, ele primeiro ajudou o Valdir Pires e o Darcy Ribeiro a embarcaram para fora. Ele tinha um inteligência logística espetacular e todo mundo recorria a ele para fazer essas coisas. Mas quando chegou a hora de ele embarcar, os militares já sabiam e estavam esperando ele no aeroporto. Daí começaram a atirar em plena pista, mas ele conseguiu fugir e foi para a embaixada da Iugoslávia.
Isso ocorreu em Brasília?
Sim. Nós tínhamos um apartamento funcional, onde eu ia de vez em quando passear. Ia fazer turismo mesmo. Para mim, não havia o menor clima ruim. Era uma garota, estudante, curtindo Brasília
E na embaixada da Iugoslávia, o que aconteceu?
A embaixada era uma construção inacabada e nem o embaixador ficava lá. Quem ficava eram os exilados. Meu pai chegou lá e pôs ordem na casa. Fez tabelas com horários para tudo. Tem até uma história que proibiram as mulheres das famílias entrar na embaixada porque eles jogavam vôlei pelados. Eles faziam a festa, do tipo a vida é boa. Daí eles pegaram um vapor e foram para Iugoslávia, onde foram bem recebidos. Meu pai ficou um mês lá e foi para Paris, viver a vida. Também foi para a Inglaterra, fazer um curso sobre plantação de bananas.
Bananas?
É. Ele era engenheiro civil, mas tinha sido cassado. Então achava que o futuro dele era se recolher na fazendo do meu avô e plantar bananas para viver. Ele tinha muita capacidade de trabalho e sabia disso, não ficava assustado com a vida. Ficou oito, nove meses no exílio
E por que ele voltou?
Por que quis, sei lá. Ele tinha passaporte diplomático ainda, por ser deputado, e não tinha sido confiscado. Ainda havia um certo respeito. Meu pai tinha dinheiro, tinha posses, não era suspeito. Daí ele pegou um avião para Buenos Aires e desceu no Rio. Naquela época os aviões paravam no meio da pista, era muita bagunça, não tinha controle. E ele apareceu em casa, sem avisar, dando um susto na minha mãe.
E você, o que pensou de tudo isso?
Eu tinha 9 anos. Estudava no colégio Sion e era sócia do Paulistano. Tinha a minha vidinha. Papai tinha dinheiro de família. Nada parecia muito diferente. Depois que ele voltou para o Brasil, nós mudamos para o Rio, em 1965, onde estavam todos os amigos dele. Lá, a vida continuou, eu virei adolescente. Adorava ler o Pasquim, tinha ficado três meses nos EUA, onde vi “Hair” e “Easy Rider”, chorava ouvindo Joan Baez, queria cortar meus peitos que estavam crescendo e doía…E minha casa se transformou um centro dos intelectuais do Rio. Bebiam, fumavam charutos e riam muito. Meu pai adorava rir, contar piadas e se divertir. Ninguém estava nem aí com os militares. Mas a verdade é que àquelas alturas a casa devia estar sendo vigiada.
E então veio o AI-5…?
É… mas mesmo assim, eles se divertiram. Lembro que meu pai e o Waldir Pires foram para praia no dia do AI-5. A marinha tinha colocado todas as fragatas na costa de Ipanema e Leblon. Mas eles conheciam aqueles navios. Eram velhos, caindo aos pedaços. Lembro de ver os dois rolando de rir, dizendo “as caldeiras vão explodir, essas merdas estão sem manutenção há 50 anos”. Inventaram uma coisa para se divertir no dia do AI -5. Ficaram assustados, sim, perceberam que a coisa estava ficando sério, mas nem tanto.
Ele foi preso só janeiro de 71. O que aconteceu nesse tempo?
Aconteceu que meu tio mais velho teve câncer no cérebro e foi se tratar nos Estados Unidos. Daí meu pai foi visita-lo e, na volta, não resistiu e passou pelo Chile. Foi conhecer o socialismo de Allende e visitar os brasileiros exilados. Distribuiu dinheiro para todo mundo. E fez contato com a Helena Bocayuva, filha do Luís Fernando, que era do MR8 e queria voltar para o Brasil. Mas ele segurou ela lá. Depois, a Helena mandou uma carta pela Cecília Viveiro de Casto em que havia um manifesto do MR8 e o endereço do meu pai. Nessa altura o SNI já estava sendo montado e já sabiam de muita coisa.
Foi por causa dessa carta que ele foi preso?
Provavelmente. E também porque ele tinha um amigo comunista, o Adriano (codinome de Carlos Alberto Muniz, militante do MR-8).
Ele estava desconfiando que seria preso?
Ele estava tenso. Já estavam acontecendo os sequestros de embaixadores, estavam soltando presos e ele sabia que tudo podia acontecer. Só achava que não aconteceria com ele. Não tinha motivos. Ele achava que, se você não tem culpa no cartório, nada pode acontecer.
E como foi no dia da prisão?
Foi em 20 de janeiro de 1971, mais ou menos às duas horas da tarde. Foi levado lá para o DOI-Codi, na Barão de Mesquita. Ele chegou e já entrou na porrada. Ficavam falando “quero ver agora, seu deputadozinho de merda”. Ele era briguento, enfrentava as pessoas e começou a discutir com os caras, a exigir seus direitos. Daí é que os caras bateram mesmo. O cara que bateu nele gostava de bater. Depois largaram ele num canto, pelado, agonizando, e quando levaram ele ao médico, já não tinha mais o que fazer. Pelas conversas que tive com amigos médicos, provavelmente ele teve uma hemorragia interna. Morreu no dia seguinte ao que foi preso, muito provavelmente.
Você já tinha presa nesse momento?
Já. Eu e minha mãe fomos presas no dia seguinte e alguma coisa me diz, uma sensação inexplicável, que ele morreu as cinco horas da tarde desse dia, 21 de janeiro.
O que aconteceu com você no dia da prisão dele?
No dia que meu pai foi preso, ficamos todos em prisão domiciliar. A casa ficou cheia de militares à paisana, gente estranha, tosca. Eu estava na praia, porque era férias, e quando voltei, minha mãe me chamou, muito assustada, e falou para eu sair e ligar para o meu tio, que era advogado. Eu saí, dizendo que ia jogar vôlei, fazia parte da equipe do Botafogo. É estranho, de algumas coisas não lembro, acho que apaguei da memória. Mas, daí eu fui na casa de um amigo, liguei para o meu tio e fiquei dando voltar em torno da minha casa. Quando entrei, um cara, um militar, do tamanho de um armário, veio tirar satisfação comigo, segurando um cabo elétrico na mão, ameaçador. Daí eu falei: “vamos conversar, senta aqui comigo, o que está acontecendo?” (rindo). Eu tinha só 15 anos. Pode?
E depois?
Não lembro de mais nada. Lembro só no dia seguinte, quando minha mãe me acordou para dizer que a gente foi convocada para prestar depoimento. Escolhi uma roupa que me cobria inteira, uma túnica preta, porque eu estava com medo. Essa roupa eu joguei fora porque tinha cheiro da prisão.
Vocês foram encapuzadas?
Sim, fomos. Entramos num fusca e lá perto do Maracanã fizeram a gente colocar o capuz, um troço fedido, devia ter sido usado por muita gente. Fiquei encapuzada a maior parte do tempo na prisão.
E lá, o que aconteceu?
Fui separada da minha mãe e me revistaram inteirinha. Inteirinha mesmo, sem o menor escrúpulo e ainda por cima por um homem. Daí me puseram num corredor, ainda de capuz, sentada no chão. Todo mundo que passava me dava um coque na cabeça, mexia nos meus peitos, me chamava de comunista, essas coisas. Eu nunca entrei na leitura da história. Nunca entendi direito o que acontecia.
Você foi interrogada?
Três vezes. No meio da tarde fui interrogada numa sala minúscula por um sujeito bastante grosseiro, gordo e peludo, extremamente violento, que foi me agredindo, fazendo perguntas sobre amigos do meu pai. “Teu pai é um grande comunista”, ele falava. “Não sei se ele é um grande comunista, acho que ele nunca leu Marx”, eu respondia. De repente ele diz que eu também era comunista. E mostra o trabalho que fiz sobre a Primavera de Praga. Era um trabalho escolar, do primeiro colegial. Eu caprichei, fiz pesquisa, era um bom trabalho. Mas…era sobre um fato que aparecia direto na imprensa e não tinha nada de comunista. Acho que foi isso que motivou minha prisão.

A família Paiva
A família Paiva

E depois, o que aconteceu?
Daí entrou um militar à paisana na sala e disse: “Cirurgião, nós temos um trabalho para você”. Cirurgião era como chamavam o torturador que me interrogava. Ele estava sendo convocado para interrogar algum infeliz. Me mandaram de volta para o corredor e eu fiquei ali, encapuzada, ouvindo a tortura nas outras salas. Ouvia berros: “Parem com isso, pelo amor de Deus” gritavam. Para mim foi um horror ouvir aquilo. A primeira vez que contei isso, não parava de chorar. Ouvir tortura, vedada num corredor, foi a coisa mais enlouquecedora do mundo. Eu fiquei meio estática, pensando “agora sei onde estou”. Duas horas depois, fui a outro interrogatório. Desta vez com um sujeito um pouco mais velho, mais sério, mais sábio. Ele me perguntou como eu estava e daí baixou o Rubens Paiva. Comecei a reclamar e a ameaçar, dizendo que tinha apenas 15 anos e que eles não podiam me prender. Estão me apalpando no corredor, estou ouvindo torturas, tem uns meninos sendo maltratados no corredor, eu falava. Acho que nessa hora, meu pai já estava agonizando, porque amainou o tom, eles deviam estar assustados.
E a sua mãe, onde estava?
Quando eu saí desse segundo interrogatório, tiraram o meu capuz e colocaram uma venda. Eu conseguia ver alguma coisa por baixo. E vi minha mãe entrando na sala da qual eu estava saindo. Falei com ela. Ela perguntou como eu estava, de uma maneira muito doce, nunca vou esquecer. Foi a única vez que eu a encontrei. Ela ficou presa onze dias. Nos três primeiros, ficou estática na cama, sem reação, porque sua filha tinha sido presa também.
Daí você voltou para o corredor?
Isso mesmo. Desta vez, eu conseguia ver por baixo, porque estava só de venda. Eu chorava compulsivamente. Conseguia identificar as pessoas sendo arrastadas, os sapatos. Depois me levaram para uma cela, tiraram a venda.
Você ficou sabendo que seu pai tinha morrido?
Praticamente sim. Tinha uns guardinhas no corredor, muito jovens, que ficaram me dando mole, porque, imagina, eu tinha 15 anos, era uma garota bem bonita. Daí eles me contaram que meu pai estava muito mal mesmo, que estava agonizando.
Você ainda teve um terceiro interrogatório?
Tive. Mas foi de madrugada, não lembro de nada, eu estava morrendo de sono. Mas eles estavam recuando naquele momento, papai já devia estar morto.
E quando você foi solta?
No dia seguinte. Lembrou que amanheceu com música do Roberto Carlos, “Jesus Cristo”. Daí me chamaram para ir embora, me deram a bolsa da minha mãe. Eu não quis ir. Queria ir com a minha mãe. Mas eles insistiram e eu estava louca para sair daquele lugar. Me puseram num fusquinha e me largaram na praça Saenz Pena.
Você voltou para casa?
Liguei para uns amigos do meu pai e eles me levaram. Depois quando minha mãe saiu, fomos para Santos na casa do meu avô e passamos a morar lá. Esperando que meu pai aparecesse. Na verdade, quem esperava era os meus avós. Nós já tínhamos certeza de que ele estava morto.
E o corpo do seu pai nunca apareceu…
Nunca. Andaram contando umas histórias de que o corpo foi jogado no mar, depois de ter sido enterrado em vários lugares. (segundo o depoimentodo coronel reformado Paulo Malhães, desmentido em seguida por ele mesmo) Para mim, é tudo fantasia. Acho que colocaram o corpo numa vala qualquer e esqueceram.
É importante para você encontrar o corpo?
Acho que sim. Quero ter a oportunidade de fazer o luto do meu pai.
Como esses eventos influenciaram na vida da sua mãe e na sua?
Minha mãe foi forte, entrou para a faculdade de direito e se tornou uma advogada brilhante. Mas ela me disse certa vez que passou os três anos seguintes pensando em se matar. Eu acho que nunca superei totalmente. Tenho problemas profissionais, não consigo me organizar. Já fui professora da USP mas não consegui manter o cargo. Tenho uma característica comum a todos os que foram presos na infância e adolescência: não enxergo os limites da vida. Parece que sou incapaz de respeitar as hierarquias. É confuso.
Por que você demorou tanto para contar essa história?
Acho que esqueci o que aconteceu, deixei pra lá, sabe? Puxa, eu tinha 15 anos, precisava viver a vida e minha história, a minha prisão, a morte do meu pai não interessava a ninguém dos meus amigos. E se eu lembrava, tinha ataques de choro. Houve uma vez em que tive um estresse muito grande e comecei a delirar e tudo o que eu via eram cenas do holocausto, da morte dos judeus. Eu não sou judia. Não entendi isso. Deve ter alguma ligação com o que eu passei.
Sobre o Autor
Jornalista, escritor, cineasta e advogado.

domingo, 20 de abril de 2014

Por que o PIB não deve ser encarado como a medida do sucesso de um país


PIB
Publicado originalmente na BBC Brasil.

Principal indicador econômico há quase um século, seria o PIB (Produto Interno Bruto) a melhor forma de medir o êxito de um país?
Uma conhecida crítica ao PIB diz que ele “mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer a pena”. A frase ficou famosa com a declaração de um integrante de um dos principais clãs políticos americanos, o ex-senador Bobby Kennedy, em 1968.
Em outras palavras, o PIB – que nasceu nos anos da Grande Depressão (anos 1930) e da Segunda Guerra (1939-1945) para mensurar o tamanho e a riqueza de uma economia – está irremediavelmente viciado como uma medida do bem-estar humano. E cada vez mais ele é questionado.
A ONG Social Progress Imperative, liderada pelo economista Michael Porter, da Universidade de Harvard, sugere uma revisão do índice. Não se trata de enterrar de vez o PIB, mas de complementá-lo com um índice que mede tudo, menos o rendimento econômico.
“Se você eliminar os indicadores econômicos”, diz Michael Green, diretor executivo do grupo, é possível “ver a relação entre o progresso econômico e social e entendê-lo muito melhor”.

Medindo o progresso social

Green, que por muitos anos estudou o desenvolvimento internacional, propôs no Fórum Econômico Mundial um novo índice, juntamente como o diretor do escritório americano da revista britânica The Economist, Matthew Bishop.
O mecanismo em questão é o Índice de Progresso Social (SPI, na sigla em inglês), que começou colhendo informações de 54 diferentes indicadores de bem-estar, tais como o acesso às escolas, cuidados de saúde, um meio ambiente limpo, saneamento e nutrição.
Em termos gerais, todos giram em torno de três perguntas:
1. O país pode prover as necessidades mais básicas de seus habitantes?
2. Foram dadas as bases de sustentação para que pessoas e comunidades consigam melhorar seu bem-estar de forma sustentável?
3. Existem oportunidades para que todos os indivíduos consigam alcançar seu máximo potencial?
Não há muita surpresa no topo da lista que engloba 132 países. As primeiras dez posições são ocupadas por todos os países nórdicos, além de democracias liberais, como Nova Zelândia, Austrália e Canadá.
Em seguida, no segundo nível da tabela, estão cinco membros do G7: Alemanha, Reino Unido, Japão, Estados Unidos e França.
O ponto forte do Japão, por exemplo, está no fato de o país conseguir prover as necessidades básicas de seus cidadãos. O país, no entanto, fica abaixo da média de bem-estar e oportunidades e tem baixa pontuação no quesito tolerância e inclusão.
Já os Estados Unidos ocupam a posição 23 na categoria de provimento de necessidades básicas, más é o quinto país quando se fala em oferecer oportunidades. Apesar de ser o país que mais gasta com atenção médica no mundo, os Estados Unidos também não se saíram bem na categoria esperança de vida.
O Brasil, por sua vez, está na posição 46 entre os 132 países. Quando comparado a outros países de renda per capita semelhante (como Irã, África do Sul, Sérvia, Venezuela, Argentina, Tailândia, entre outros), o país se sai melhor em quesitos como liberdade de expressão, tolerância e acesso à saúde básica, mas vai pior nos rankings de violência, saneamento e acesso ao esnino universitário.

Primavera árabe

Ainda que boa parte da informação coletada ainda precise ser processada para que se extraiam conclusões mais significativas, o índice já nos dá algumas lições interessantes sobre a distinção entre estruturas econômicas e sociais.
“Tomemos como exemplo a primavera árabe”, diz Green. “Há um grupo de países que estavam indo muito bem economicamente e, de repente, ocorre um colapso social”, argumenta.
“Claramente uma política baseada apenas no crescimento econômico não funcionou, a ponto de gerar uma anomia social”, diz.
Mas é só passar o olho no índice SPI para ver que esse descontentamento poderia ter sido previsto.
“Todos os países da África do Norte tem um desempenho muito ruim na categoria oportunidades”, avalia Green.
“Não se travam precisamente de necessidades materiais, mas sim a oportunidade de avançar na vida: direitos, liberdades, opções, tolerância e inclusão”, dzi.
“Liberdade”, disse uma vez o líder trabalhista inglês Nye Bevan, “é o subproduto do excedente econômico”. O índice SPI, no entanto, contradiz parcialmente essa teoria.
Ainda que SPI mostre que a pobreza extrema e o desempenho social deficiente caminhem de mãos dadas, a correlação perde o sentido quando os países alcançam um determinado nível de prosperidade.
A parte de baixo da tabela está dominada por economias em aperto, mas países ricos em petróleo como Rússia e Arábia Saudita também tem desempenho muito precário em termos de desenvolvimento social.
Nova Zelândia e Itália, que estão próximas em termos de PIB, estão separadas por 29 posições na tabela do SPI.

‘Destino’

Em outras palavras, para Green “o PIB não é o destino”. Já houve várias tentativas de complementar ou substituir o PIB. A ONU, por exemplo, desenvolveu o IDH, Índice de Desenvolvimento Humano.
Recentemente, um ex-alto-funcionário britânico, Gus O’Donnell, publicou um relatório sobre bem-estar e política, investigando os principais motores econômicos, sociais e pessoais da felicidade.
O ponto forte do SPI, segundo Green, é a diversidade de indicadores que leva em consideração e o fato de que todos eles, da tolerância religiosa ao abastecimento elétrico, podem ser comparados com o crescimento do PIB.
Analisar dentro do SPI os indicadores que têm relação com o aumento da felicidade poderia dar pistas sobre o desenvolvimento das nações.

Paraguai

Mas nem todos estão de acordo com a ideia de que o PIB não mede o bem-estar. Nick Oulton, da London School of Economics, argumenta que o crescimento econômico pode ser uma boa medida de bem-estar de um país.
“Não vai resolver todos os problemas, mas o aumento da riqueza pode levar à queda na mortalidade infantil, ao aumento da expectativa de vida e a que as pessoas sejam mais saudáveis porque podem comer mais”, diz.
Oulton vai além e diz que há o risco de o grupo dos anti-PIB de “incitar políticas intrusivas”. É como se estivessem dizendo: “Você acha que sabe o que é o melhor para você, mas nós sabemos mais”.
Em última instância, o êxito do SPI será medido por sua influência na tomada de decisões políticas.
Algum países já estão tomando nota. Em julho do ano passado o Paraguai se tornou o primeiro país a usar oficialmente o SPI para fundamentar a tomada de decisões políticas.
Mas a real utilidade do SPI vai se dar quando se puder compará-lo com outros dados. Comparar o SPI e os gastos públicos, por exemplo, pode ajudar a resolver o debate sobre o Estado mínimo ou o Estado grande.
Outra prova da utilidade seria a medição da desiguladade da renda em comparação ao progresso social para comprovar a “hipótese da desiguladade”: Mais igualdade de renda significa mais saúde e felicidade?
Adote-se o SPI ou não, uma coisa e certa: já é um avanço o fato de o SIP estar disponível e ser possível fazer experiências com as informações.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Por que Putin se transformou no Mal em pessoa para o Ocidente


Publicado originalmente no Common Dreams.


POR TARIQ ALI

Mais uma vez, parece que a Rússia e os Estados Unidos estão encontrando dificuldades para chegar a acordo sobre a forma de lidar com as respectivas ambições. Este choque de interesses atingiu o auge na crise ucraniana. A provocação, neste caso particular, como sugere a gravação que vazou de uma diplomata dos EUA, Victoria Nuland, dizendo “Foda-se a União Europeia”, veio de Washington.
Várias décadas atrás, no ápice da Guerra Fria, George Kennan, um estrategista da política externa americana informou a audiência de suas palestras: “Não há , deixe-me assegurá-los, nada na natureza mais egocêntrico do que a democracia em apuros. Logo ela se torna vítima de sua própria propaganda. Em seguida, ela tende a dar a sua causa um valor absoluto que distorce a sua própria visão… O inimigo se torna a personificação de todo o mal. Ela é o centro de todas as virtudes”.
E assim continua. Washington sabe que a Ucrânia tem sido sempre um assunto delicado para Moscou. Os ultranacionalistas que lutaram com o Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial mataram 30 mil soldados russos e comunistas. Pavel Sudoplatov, um chefe da inteligência soviética, escreveu em 1994: “As origens da Guerra Fria estão intimamente entrelaçadas com o apoio ocidental à agitação nacionalista nas áreas bálticas e na Ucrânia ocidental.”
Quando Gorbachev assinou o acordo da reunificação alemã, o secretário de Estado dos EUA Baker assegurou-lhe que “não haveria expansão da jurisdição da Otan nem uma polegada para o leste” . Gorbachev repetiu: “Qualquer expansão da Otan é inaceitável.” A resposta de Baker: “De acordo”. Uma das razões que levaram Gorbachev a apoiar publicamente Putin na Crimeia é que sua confiança no Ocidente foi tão cruelmente traída.
Enquanto Washington acreditava que os líderes russos cegamente faziam o que lhe interessava (especialmente o bêbado Yeltsin), Moscou teve apoiou. O ataque de Yeltsin ao parlamento russo em 1993 foi festejado nos meios de comunicação ocidentais. As agressões à Chechênia por Yeltsin e depois por Putin foram tratadas como um pequeno problema local por George Bush e Tony Blair. “A Chechênia não é o Kosovo”, disse Blair depois de sua reunião com Putin em 2000.
O livro de Tony Wood, “Chechênia: A Favor da Independência”, fornece capítulo e versículo dos horrores que foram infligidos a esse país. A Chechênia tinha sido independente entre 1991 e 94. Seu povo observou a velocidade com que as repúblicas bálticas fizeram sua independência e queria o mesmo para si.
Em vez disso, foram bombardeados. Grozny, a capital, foi praticamente reduzida a pó. Em fevereiro de 1995 dois economistas russos corajosos, Andrey Illarionov e Boris lvin, publicaram um texto no Moscow News a favor da independência da Chechênia e o jornal também publicou algumas excelentes reportagens que revelaram atrocidades em grande escala, superando o cerco a Sarajevo e o massacre de Srebrenica. Estupro, tortura, refugiados desabrigados e dezenas de milhares de mortos. Nenhum problema para Washington e seus aliados da União Europeia.
No cálculo dos interesses ocidentais não há sofrimento, qualquer que seja a sua dimensão, que não possa ser justificado. Chechenos, palestinos, iraquianos, afegãos, paquistaneses são de pouca importância. No entanto, o contraste entre a atitude do Ocidente em relação à guerra na Chechênia e a Crimeia é surpreendente.
A invasão da Crimeia não teve nenhuma perda de vida e a população claramente queria fazer parte da Rússia. A reação da Casa Branca foi o oposto da sua reação à Chechênia. Por quê? Porque Putin, ao contrário de Yeltsin, está se recusando a baixar a cabeça para a expansão da Otan, as sanções ao Irã, a Síria etc. Como resultado, ele se tornou o Mal em pessoa. E tudo isso porque decidiu contestar a hegemonia dos EUA usando os métodos frequentemente implantados pelo Ocidente. (As repetidas incursões da França na África são apenas um exemplo.)
Se os EUA insistem em usar o ímã da Otan para atrair a Ucrânia, é provável que Moscou irá separar a parte oriental do país. Aqueles que realmente valorizam a soberania ucraniana devem optar pela independência real e uma neutralidade positiva: nem um brinquedo do Ociente e nem de Moscou.

Historiador norte-americano desmente “terror” de Stalin

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A pesada artilharia ideológica do revisionismo e da Guerra Fria contra Stálin e suas realizações na construção do socialismo na União Soviética ainda hoje se faz sentir. Não é verdade que o mero distanciamento no tempo nos permite ver com mais clareza o que se passou, como lemos tantas vezes nas capas de dezenas de livros burgueses sobre o período. Não nesse caso. Conforme nos ensina Lênin, não existe neutralidade numa sociedade dividida em classes, e, por isso, não é de se esperar que autores burgueses mudem seu ponto de vista com o passar dos anos.
No entanto, isso não impede que alguns lampejos de lucidez e honestidade intelectual possam ser encontrados entre historiadores não-marxistas que estudam a questão, como é o caso de Robert W. Thurston, professor de História na Universidade de Miami, em Oxford, Ohio, EUA, e autor da obraLife and terror in Stalin’s Russia – 1934-1941 (Vida cotidiana e terror na Rússia de Stálin, em tradução livre), ainda sem tradução para o português.
Ao analisar o período comumente referido como o mais repressivo na história da URSS, que foi entre 1934 e 1941, Thurston afirma que Stálin, ao contrário do que é propagandeado pela academia burguesa, nunca teve a intenção de aterrorizar o país e que não tinha nenhuma necessidade disso. Ao contrário, afirma o historiador, as grandes massas da população soviética não só acreditavam que as mudanças em curso no país eram uma real busca por inimigos internos, como essas mesmas massas colaboravam com o Governo revolucionário nesta tarefa.
Thurston inicia seu livro mostrando que, após um conturbado início de século, ao passar por duas revoluções, uma Guerra Mundial e uma Guerra Civil, o Governo soviético começou a “relaxar” no início da década de 1930, no sentido de introduzir reformas no sistema penal e atenuar as práticas punitivas. Entre os vários exemplos utilizados pelo historiador, encontramos neste ponto o relato de que Stálin e Molotov, em 1933, ordenaram a libertação de nada menos que metade de todos os camponeses que haviam sido presos por questões ligadas à coletivização. Em agosto de 1935, o Governo declarou anistia a todos os trabalhadores condenados a menos de cinco anos e que estavam trabalhando “honradamente e com boa consciência”. Mas, a despeito de todas as positivas ações que vinham sendo tomadas neste sentido, novos acontecimentos fizeram com que essa tendência fosse bruscamente interrompida.
A partir do assassinato de Kirov, em 1934, uma rede conspirativa foi identificada no alto escalão do Governo e do Exército soviéticos. Segundo Thurston, havia realmente um bloco trotskista em atividade na URSS; Bukharin tinha conhecimento de um centro articulado contra Stálin; pelo menos um dos seguidores de Bukharin mencionou matar Stálin; e informações de origens distintas confirmavam um complô no Exército articulado por Tukhachevsky. Assim, todas as evidências apontam para o fato de que as ações do Governo, desse momento em diante, foram uma reação a eventos que se passavam no país, e não uma política deliberada e imotivada de repressão, como defende a historiografia burguesa.
Esta reação do Governo foi levada a cabo em grande parte pela chamada Polícia Política, a NKVD. Mas, ao contrário da fantasia burguesa devaneada no livro 1984, do trotskista George Orwell, a NKVD, segundo Thurston, estava longe de ser uma organização “onisciente” e “onipotente”, uma espécie de “Grande Irmão”. Segundo o historiador, essa organização dependia tanto das informações quanto da colaboração dos cidadãos soviéticos. Assim, a chamada Polícia Política, apontada na historiografia burguesa como uma consequência de um “desequilíbrio mental” de Stálin, foi, na verdade, uma criação da própria sociedade e da história soviéticas. Thurston cita como evidência o fato de que simples cidadãos podiam não somente influenciar a NKVD em algumas detenções, como também tinham o poder de até mesmo impedir algumas delas. Segundo Thurston, “nem Stálin e nem a NKVD agiram independentemente da sociedade”, embora esta organização tenha, de fato, cometido erros e excessos sob a liderança de Ezhov, afastado do cargo e julgado posteriormente.
Este último ponto é de vital importância. A historiografia burguesa superdimensiona as exceções e lhe dão ostatus de regra, querendo indicar, com isso, que a maioria dos prisioneiros do período eram inocentes. Uma consequência de tal cenário seria que a maioria da população viveria então permanentemente atemorizada, com receio de ser presa a qualquer momento, por nada.
“Ninguém pode julgar quantas pessoas temiam o regime no final de década de 1930… mas abundantes fontes revelam… que a resposta a essa situação era limitada… Tal temor ocorria dentro de certas categorias da população…”, afirma Thurston. Seja qual for o momento analisado entre 1934 e 1941, um temor ao Governo era certamente menos importante do que a crença de que as autoridades buscavam identificar inimigos reais do país. Sobreviventes do período reforçam repetidamente este ponto de vista. Pelo menos entre 1939 e 1941 é possível afirmar, com segurança, que os trabalhadores urbanos da URSS exibiam patriotismo, apoio à liderança de Stálin e confiança no seu direito e na sua capacidade de criticar importantes aspectos da situação.
Apoio do povo ao Governo soviético
Outro ponto de destaque na caricatura traçada pela burguesia sobre o Governo de Stálin é a questão da falta de liberdade de crítica. Vão de encontro a isso, no entanto, os inúmeros exemplos citados por Thurston de organizações dos próprios trabalhadores que tinham como objetivo discutir e criticar aspectos de suas vidas nas fábricas e no país. Uma dessas formas era através dos jornais das fábricas, nos quais qualquer trabalhador poderia contribuir. O jornal da fábrica de Voroshilov, em Vladivostok, por exemplo, recebeu mais de duas mil cartas para publicação somente no primeiro semestre de 1935.
Mas o principal teste do Governo de Stálin foi a resposta da população à Segunda Guerra Mundial. Segundo Thurston, não houve deserção em massa durante a guerra. A principal característica do Exército Vermelho foi sua assombrosa determinação de vencer, e essa foi a razão pela qual venceu. Assim, apesar de todos os erros que podem ter ocorrido nos processos do chamado “terror” no final dos anos 1930, a Segunda Guerra Mundial foi, segundo Thurston, o “teste ácido” de todo o período de Stálin, no qual não apenas os soldados do Exército Vermelho lutaram com toda determinação, como os trabalhadores que ficaram no país continuaram a produzir, em situações muitas vezes dificílimas, as armas, os tanques e os armamentos necessários para a vitória.
Glauber Athayde, Belo Horizonte