quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O terrorismo moral que Joaquim Barbosa está impondo a Genoino e família

Postado em 17 Dec 2013
Uma família desesperada e desamparada
Uma família desesperada e desamparada
Você tem que fazer muita maldade para que alguém beba quando você morrer. Você tem que despertar muito ódio.
Margaret Thatcher, por exemplo.
Fui a Trafalgar Square, no centro de Londres, cobrir, como jornalista, a festa que fizeram quando ela morreu.
Fazia mais de vinte anos que ela deixara Downing Street, a sede do governo britânico, e ainda assim Thatcher era lembrada com uma raiva que fazia você pensar que ela ainda era primeira ministra.
Me lembro claramente da imagem de um um velho sindicalista que abriu uma garrafa de uísque e disse, antes de tomar a primeira dose: “Esperei vinte anos por esse momento.”
Thatcher massacrou os sindicalistas, e acabou promovendo uma brutal concentração de renda no Reino Unido, uma coisa comparável à era vitoriana, tão bem retratada nos miseráveis de Dickens.
Em minha vida adulta, vi no Brasil apenas um personagem capaz de provocar um sentimento tão ruim.
É ele, Joaquim Barbosa.
Nunca houve alguém tão antibrasileiro quanto Joaquim Barbosa: mesquinho, vingativo, cruel, recalcado.
O que ele está fazendo com Genoino e família tem um nome: terrorismo. Terrorismo moral, terrorismo sádico.
Qual o sentido em deixá-los em suspenso às vésperas do Natal, uma época de concórdia, sem saber se Genoino será devolvido ou não à cadeia?
É vingança. A mesma coisa que levou Barbosa a tentar demitir do STF a mulher do jornalista que revelou que ele gastou 90 000 reais do dinheiro público para reformar os banheiros de seu apartamento funcional.
Barbosa debitou, na conta de Genoino, as críticas que recebeu, na semana passada, de petistas reunidos em um congresso.
Bandeira de Mello, o jurista, disse que, se fosse o PT, tentaria o impeachment de Joaquim Barbosa.
Digo também: se eu fosse o PT, faria o mesmo.
Joaquim Barbosa está ajudando a construir um país da discórdia. Ele não une: é um desagregador.
Como Lula não percebeu os seus imensos defeitos ao escolhê-lo?
A biografia de Lula estará sempre manchada por haver indicado para a mais alta corte do país uma pessoa tão má quanto Barbosa.
Não há desculpa para este erro monumental de Lula.
Os brasileiros estão tendo agora que arcar com a infeliz, negligente, descuidada indicação de Lula.
Entre os brasileiros, ninguém está enfrentando mais as consequências disso que Genoino e família.
Miruna, a filha mais velha de Genoino, uma guerreira na defesa do pai, mais uma vez ergueu sua voz diante do terrorismo barbosiano.
Ela está desesperada. Ela não finge, ela não mente: é uma filha que está vendo o pai ser massacrado impiedosamente – e injustamente.
Ninguém vai fazer nada? Esta a pergunta central, doída de Miruna.
Pelo visto, a resposta é não.
A prioridade do PT é a campanha de Dilma, e Genoino está no fim da fila. Uma palavra aqui, outra ali, e não mais que isso.
Mas o futuro haverá de trazer uma resposta para a questão de Miruna.
Muitos brasileiros, e não necessariamente apenas petistas, haverão de fazer exatamente o que o sindicalista inglês fez quando recebeu a notícia da morte de Thatcher.
Paulo Nogueira
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Banco Mundial, SUS e mídia: a arte da manipulação

A manchete da primeira página da Folha (9/12/13) não deixa margem à dúvida: “Ineficiência marca gestão do SUS, diz Banco Mundial”. A matéria destaca que essa é “uma das conclusões de relatório inédito obtido com exclusividade pela Folha”. Aos desavisados a mensagem subliminar é clara: o SUS é um fracasso e o Ministro da Saúde, incompetente.
A curta matéria da suposta avaliação do Banco Mundial sobre vinte anos do SUS é atravessada de “informações” sobre desorganização crônica, financiamento insuficiente, deficiências estruturais, falta de racionalidade do gasto, baixa eficiência da rede hospitalar, subutilização de leitos e salas cirúrgicas, taxa média de ocupação reduzida, superlotação de hospitais de referência, internações que poderiam ser feitas em ambulatórios, falta de investimentos em capacitação, criação de protocolos e regulação de demanda, entre outras.
Desconfiado, entrei no site do Banco Mundial e consegui acesso ao “inédito” documento “exclusivo”**. Para meu espanto, consultando as conclusões da síntese (Overview), deparei-me com a seguinte passagem que sintetiza as conclusões do documento (página 10):
“Nos últimos 20 anos, o Brasil tem obtido melhorias impressionantes nas condições de saúde, com reduções dramáticas mortalidade infantil e o aumento na expectativa de vida. Igualmente importante, as disparidades geográficas e socioeconômicas tornaram-se muito menos pronunciadas. Existem boas razões para se acreditar que o SUS teve importante papel nessas mudanças. A rápida expansão da atenção básica contribuíu para a mudança nos padrões de utilização dos serviços de saúde com uma participação crescente de atendimentos que ocorrem nos centros de saúde e em outras instalações de cuidados primários. Houve também um crescimento global na utilização de serviços de saúde e uma redução na proporção de famílias que tinham problemas de acesso aos cuidados de saúde por razões financeiras. Em suma, as reformas do SUS têm alcançado pelo menos parcialmente as metas de acesso universal e equitativo aos cuidados de saúde (tradução rápida do autor).
Após ler essa passagem tive dúvidas se havia lido o mesmo documento obtido pela jornalista. Fiz novos testes e cheguei à conclusão que sim. Constatado que estava no rumo certo continuei a ler a avaliação do Banco Mundial e percebí que as críticas são apontadas como “desafios a serem enfrentados no futuro”, visando o aperfeiçoamento do SUS.
Nesse caso, o órgão privilegia cinco pontos, a saber: ampliar o acesso aos cuidados de saúde; melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços de saúde; redefinir os papéis e relações entre os diferentes níveis de governo; elevar o nível e a eficácia dos gastos do governo; e, melhorar os mecanismos de informações e monitoramento para o “apoio contínuo da reforma do sistema de saúde” brasileiro.
O Banco Mundial tem razão sobre os desafios futuros, mas acrescenta pouco ao que os especialistas brasileiros têm dito nas últimas décadas. Não obstante, é paradoxal que esses pontos críticos ainda são, de fato, críticos, em grande medida, pela ferrenha oposição que o Banco Mundial sempre fez ao SUS, desde a sua criação em 1988: o sistema universal brasileiro estava na contramão do “Consenso de Washington” e do modelo dos “três pilares” recomendado pelo órgão aos países subdesenvolvidos.*** É preciso advertir aos leitores jovens que, desde o final dos anos de 1980, Banco Mundial sempre foi prejudicial à saúde brasileira.
É uma pena que o debate sobre temas nacionais relevantes – como o sistema público de saúde, por exemplo – seja interditado pela desinformação movida pelo antagonismo das posições políticas, muitas vezes travestido de ódio, que perpassa a sociedade, incluindo a mídia.
Que o espírito reconciliador Mandela ilumine os brasileiros – e o pobre debate nacional.
BAIXO O DOCUMENTO DO BANCO MUNDIAL AQU
*Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT/IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento (www.politicasocial.net.br).
**Twenty Years of Health System Reform in Brazil – An Assessment of the Sistema Único de Saúde. Michele Gragnolati, Magnus Lindelow, and Bernard Couttolenc. Human Development. 2013 International Bank for Reconstruction and Development / The World Bank 1818 H Street NW, Washington DC.
***Consultar, especialmente: BANCO MUNDIAL (1990). World Development Report: Poverty. Washington, D.C; BANCO MUNDIAL (1991). Brasil: novo desafio à saúde do adulto. Washington, D.C. 1991; BANCO MUNDIAL (1993). World Development Report: Investing in Health. Washington, D.C; BANCO MUNDIAL (1994). Envejecimiento sin crisis: Políticas para la protección de los ancianos y la promoción del crecimiento. Washington, D.C; e BANCO MUNDIAL (1995). A Organização, Prestação e Financiamento da Saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90. Washington, D.C

Gente séria do meio jurídico condena a conduta do presidente do STF Seja lá o que move Joaquim Barbosa, a magistratura está chocada com seus excessos

Ao longo de todo o julgamento da Ação Penal 470, não faltaram decisões ­espetaculares por parte de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), sobretudo de seu presidente, Joaquim Barbosa. Na mais recente, ao determinar a prisão de 12 dos 25 réus do processo em pleno feriado da República, o presidente da Corte Suprema provocou vários tipos de reação: a dos deslumbrados com o espetáculo, estimulados pela cobertura recorrente em meios tradicionais de comunicação, a dos que acreditam na Justiça e a dos indignados com procedimentos adotados pelo magistrado. Nesse caso, chama a atenção o incômodo no próprio meio jurídico com algumas decisões.
Personalidades do Judiciário, preocupadas com possíveis abusos de poder por parte do presidente do STF, expressaram sua posição, em manifesto público distribuído no dia 19 de novembro. O texto foi assinado por dezenas de acadêmicos, intelectuais, advogados e juristas com o nome historicamente associado à defesa da democracia, entre eles Dalmo Dallari e Celso Bandeira de Mello – este último disse considerar Barbosa “uma pessoa má”.
“Ele é um homem mau, com pouco sentimento humano”, comentou Bandeira de Mello. “Falo isso sem nenhum preconceito com a pessoa dele, pois já o convidei para jantar na minha casa. Mas o que ele faz é simplesmente maldade”, reiterou. O ex-governador de São Paulo Claudio Lembo chegou a considerar num programa de TV que o “linchamento” praticado por Joaquim Barbosa e as ilegalidades das prisões poderiam levar ao seu impeachment. “Nunca houve impea­chment de um presidente do STF. Mas pode haver, está na Constituição. O poder Judiciário não pode ser instrumento de vendeta (termo originalmente italiano para ‘vingança’)”, afirmou.
No manifesto, os signatários afirmam que a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal de mandar prender os réus da AP 470 no dia da proclamação da República expõe “claro açodamento” e falam em ilegalidade. “Sem qualquer razão meramente defensável, organizou-se um desfile aéreo, custeado com dinheiro público e com forte apelo midiático, para levar todos os réus a Brasília. Não faz sentido transferir para o regime fechado, no presídio da Papuda, réus que deveriam iniciar o cumprimento das penas já no semiaberto em seus estados de origem”,  diz o documento. “Só o desejo pelo espetáculo justifica. Não escrevemos em nome dos réus, mas de uma significativa parcela da sociedade que está perplexa com a exploração midiática das prisões e temem não só pelo destino dos réus, mas também pelo futuro do Estado Democrático de Direito no Brasil.”
O texto alerta que o procedimento relativo à execução da pena constituiu “erro inadmissível que compromete a imagem e a reputação do Supremo Tribunal Federal e já provoca reações da sociedade e meio jurídico”. Para Bandeira de Mello, o plenário do STF poderia inclusive fazer uma censura pública a Barbosa.
Entidades representativas da magistratura também expressaram críticas ao comportamento de Barbosa. Casos da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O presidente da AMB, João Ricardo dos Santos Costa, considerou um “canetaço” a decisão do presidente do STF de fazer pressão para substituir o juiz da Vara de Execuções Penais responsável pelos presos em Brasília. Em outra nota, a presidenta da AJD, ­Kenarik Boujikian, afirma que “o povo não aceita mais o coronelismo no Judiciário”.

Precipitação

As confusões começaram quando Barbosa obrigou réus a tomar um avião e seguir para o Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, quando vários deles esperavam ficar em penitenciárias nos seus estados. O local não estava preparado para recebê-los e, num primeiro momento, mesmo os condenados ao regime semiaberto – caso dos ex-dirigentes do PT – tiveram de ficar numa ala específica para detentos do regime prisional fechado. Além da forma como a prisão foi feita, do desconforto observado entre ministros do STF com a decisão tomada de forma monocrática pelo presidente, a situação passou a piorar com o agravamento do estado de saúde do deputado José Genoino.
Operado em julho e vítima de um acidente vascular cerebral em agosto, Genoino já tinha sua situação clínica publicamente conhecida, antes mesmo do término do julgamento. Ainda assim, somente depois que o deputado foi levado às pressas para o Instituto Cardiológico do Distrito Federal com suspeita de infarto, foi concedida – ainda de maneira provisória – autorização para que ficasse num hospital ou na casa de algum parente. Genoino precisa tomar anticoagulantes, tem picos elevados de pressão e seu estado requer cuidados. No dia 24, ao sair do Incor, foi para a casa da filha Mariana, que vive em Brasília. “Quando recebeu o mandado de prisão ele tinha recebido alta hospitalar, não alta médica. Precisa tomar vários remédios por dia e fazer uma rotina de exercícios de respiração e fonoaudiológicos”, disse a outra filha, Miruna.
Celso Bandeira de Mello assinalou ainda dois fatos que considerou graves e que, por contrariar a legislação, poderiam motivar o afastamento de Barbosa: o encaminhamento para o regime fechado de pessoas que haviam sido condenadas ao semiaberto e a expedição de mandados de prisão em pleno feriado da Proclamação da República sem as respectivas cartas de sentença (emitidas 48 horas depois). No Congresso, alguns senadores chegaram a discutir em reservado a possibilidade de iniciar um movimento para, eles próprios, pedirem o impeachment de Barbosa. Foram, porém, desestimulados pelo governo. O Palácio do Planalto não se pronuncia oficialmente, mas teme uma crise institucional, o choque entre poderes, e não descarta que, em meio a tantas reações, Barbosa seja transformado em “vítima” pelos meios de comunicação que lhe dão guarida.
O ministro já foi, de fato, acusado pelos colegas de tentar se vitimizar quando seus atos não saem conforme o planejado. “Ele sempre gostou de usar recursos para se fazer de vítima. Fez isso com sua doença na coluna, tempos atrás, e agora segue no mesmo estilo”, comentou um ministro aposentado. Até mesmo dentro de casa o clima era de desconforto. “Foi uma atitude açodada. Não havia motivo (para a decretação das prisões em pleno feriado)”, afirmou o ministro Marco Aurélio de Mello.
Contatos e planos
Outra trapalhada de Barbosa diz respeito à substituição do juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) do Distrito Federal. Apesar do titular da Vara ser Ademar Silva de Vasconcelos, Barbosa pediu para que fosse designado, para o caso dos réus da AP 470, o juiz substituto Bruno André da Silva Ribeiro. Ribeiro é tido como um magistrado preparado e elogiado por muitos. Leciona Direito Penal e Direito Processual­ Penal no Instituto Brasileiro de Direito Público (IBDP), que tem como um dos sócios o ministro Gilmar Mendes.
Bruno é filho de um ex-deputado do Distrito Federal, Raimundo Ribeiro, que ocupou cargos no governo Fernando Henrique Cardoso e tem participação atuante no PSDB local. Além disso, é ligado ao ex governador José Roberto Arruda – preso e cassado em 2009. Sua mãe, a servidora pública Luci Rosane Ribeiro, constantemente posta nas redes sociais mensagens com críticas ao PT, e chegou a publicar uma foto de Joaquim Barbosa, elogiando a condução do ministro no julgamento. “A indicação do nome do meu filho não tem qualquer conotação de ordem político-partidária”, sustentou o ex-deputado.
Os contatos do presidente do STF com o juiz Bruno Ribeiro foram mantidos desde antes da decretação da prisão dos condenados. Foi para ele que Barbosa encaminhou documentos referentes ao processo quando decretou a prisão. Como ele estava entrando em férias, a incumbência ficou com o titular da Vara, Ademar Vasconcelos. O presidente do STF chegou a afirmar que as informações que vinha recebendo do juiz titular eram diferentes das que lhe foram repassadas depois sobre a situação clínica de Genoino­. A interpretação de alguns ministros e juízes que defendem a postura do titular da Vara é de que Barbosa poderia, assim, usar Vasconcelos como bode expiatório caso Genoino viesse a ter um fim trágico por causa da sua prisão intempestiva.
Em meio a essa trama, correm no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) especulações de que Barbosa pedirá aposentadoria do cargo até abril do próximo ano, um sinal de que seu “açodamento” seria calculado. Embora ele negue, comenta-se que poderá disputar uma vaga ao Senado Federal pelo Rio de Janeiro – a legenda provável seria o PSB de Eduardo Campos.
Outra possibilidade, noticiada recentemente pelo jornalista Wilson Lima, do portal IG em Brasília, é a aproximação com o senador mineiro Aécio Neves, postulante do PSDB à Presidência da República. Poderia ser seu vice, ou anunciado com provável ministro. “O tucanato, oficialmente, nega qualquer tentativa de aproximação. Mas nos últimos dois meses, conforme os próprios tucanos, os encontros entre Aécio e Barbosa têm sido cada vez mais frequentes em jantares e eventos sociais em Brasília”, anota o jornalista. Ele lembra que em abril o presidente do STF, mineiro de Paracatu, foi homenageado com a Medalha da Inconfidência pelo governo de Minas Gerais.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira / do Luis Nassif online

A primeira vez que ouvi a Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente. Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base. A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão. Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”. Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? E mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social. Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação para isto.
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui. Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia. 
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora. 
Assim, boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito.
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras? Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar. O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais, etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada. Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática. Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios. Acho que isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média. 
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte; se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época. Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas. A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa. Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político. 
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida. Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas. 
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais. 
Aliás, tenho certeza de que todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas. Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social. Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa. 
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social. 
a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos. 
c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam. 
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq. 
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo. Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia. 
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Por que a Globo faz o que faz


Postado em 01 Dec 2013
Crescer ou morrer: Roberto Marinho
Crescer ou morrer: Roberto Marinho
Existe uma passagem no livro Dossiê Geisel – uma compilação de papeis do arquivo pessoal de Geisel – que conta muito sobre o espírito da Globo.
O governo militar – que criara a Rede Globo para receber apoio maciço na televisão – começara a ficar preocupado com o monopólio da emissora. Os militares não queriam que a emissora crescesse mais.
A Globo, por isso, não receberia novas concessões.
Roberto Marinho se insurgiu.
Numa conversa com um ministro de Geisel, registrada e depois guardada pelo ex-presidente, Roberto Marinho explicou a filosofia da Globo. Ele queria que tirassem os freios à expansão de seu negócio.
Uma empresa que não cresce declina, afirmou Marinho.
Na visão dele, a Globo teria sempre que crescer para não entrar em declínio.
Crescer a qualquer preço seria uma consequência natural do modo de ver as coisas de Roberto Marinho: ele jamais se caracterizou por escrúpulos ou magnanimidade.
Num dos episódios mais reveladores de sua vida empresarial, submeteu o concorrente quebrado Adolpho Bloch a uma espera interminável em sua antessala. Bloch precisava de dinheiro. Ao recebê-lo enfim Roberto Marinho disse: “Passar bem.”
Foi essa a maneira que ele encontrou de responder a Bloch depois de um episódio em que o direito de transmissão do Carnaval do Rio fora dado à Manchete.
Seus herdeiros – Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto – são continuações e extensões do pai.
Isso significou que, morto Roberto Marinho, as coisas continuaram essencialmente do mesmo jeito na Globo.
Ou crescemos ou estamos fritos.
Se você acredita nisso, tende a tomar grandes riscos para o avanço ininterrupto.
Se os riscos parecem protegidos por um esquema que garanta, ou quase garanta, impunidade, você num certo momento já não enxerga limites.
O espetacular caso da trapaça fiscal para não pagar os impostos relativos à compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002 se encaixa aí.
Por que não fazer algo que evitaria o pagamento de milhões de reais? A Receita poderia pegar? Difícil: quem quer encrenca com a Globo?
E se uma eventual disputa fosse parar na Justiça?
Roberto Irineu com Gilmar Mendes, do STF
Roberto Irineu com Gilmar Mendes, do STF
Ora, a Globo tem excelentes conexões na Justiça. O mais novo integrante do Supremo, Luiz Roberto Barroso, era advogado da organização de lobby da Globo, a Abert.
Num artigo publicado no Globo, Barroso defendeu a reserva de mercado para a mídia brasileira com argumentos engraçados.
Num deles, dizia que seria arriscado uma emissora estrangeira – chinesa, suponho – fazer propaganda, no Brasil, da ideologia de Mao Tsetung.
Em outro, classificava as novelas de patrimônio cultural brasileiro. Não poderíamos arriscar perder esse patrimônio, segundo Barroso.
As relações são sempre renovadas. Recentemente, a Globo empregou o filho de Joaquim Barbosa. Algum tempo antes, como revelou o Diário, JB pagara – quer dizer o erário pagara – as despesas de viagem de uma jornalista do Globo para cobrir uma palestra insignificante sua na Costa Rica.
Uma das vozes mais estridentes em defesa dos interesses dos Marinhos – Merval Pereira – desfilou várias vezes com Ayres Brito, recém-aposentado do Supremo.
O magistrado escreveu o prefácio de um livro de Merval sobre o Mensalão. Na luz do sol. Isso quer dizer que, com o passar dos anos e com a consolidação da impunidade, você já não enxerga coisas como a abjeção de relações promíscuas. Merval e Ayres Brito sorriram para as câmaras como se a aliança entre ambos fosse natural.
Quem acredita que o caso dos direitos da Copa de 2002 foi o único acredita em tudo, como disse Wellington.
Nos últimos anos, a Globo se esmerou em práticas destinadas a sonegar impostos.
A transformação de funcionários caros em Pessoas Jurídicas, as PJs, por exemplo.
De vez em quando, isso traz problemas, mas o benefício parece ser muito maior que a custo nas contas da Globo. Neste momento, um dos PJs, Carlos Dornelles, trava uma disputa jurídica com a Globo.
Semanas atrás, em São Paulo, eu soube que o jornalista Paulo Moreira Leite – que eu contratara para a Época pela CLT, é claro – fora transformado em PJ depois de minha saída do cargo de diretor editorial das revistas da Globo. (PML hoje está na Isto É.)
É o chamado vale tudo para crescer.
Num ambiente de acentuado declínio das mídias tradicionais por conta da internet, você pode imaginar o grau de ansiedade – e agressividade — dos Marinhos para continuar a crescer.
O fato novo, aí, é o jornalismo digital.
É mais fácil controlar tudo quando nada é noticiado, evidentemente.
O jornalismo digital acabou com isso. As coisas saem. A opinião pública é informada de coisas como a sonegação na compra da Copa.
Em outras circunstâncias, dois ou três telefonemas dos donos da Globo bastariam para que ninguém noticiasse na mídia tradicional. E você não saberia de nada.
A mídia digital liquidou esse controle subterrâneo das informações.
Quem ganha com isso é a sociedade.
Paulo Nogueira
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Balaio do Kotscho

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"Nós não éramos assim", constata o amigo Washington Olivetto. Além de grande mestre da publicidade brasileira, ele é um livre pensador corintiano sempre atento ao que acontece à sua volta e preocupado com os rumos do país.
Tanto que, em plena manhã de sábado de dezembro, quando todo mundo vai às compras e às festinhas de fim de ano, Washington estava lá firme no auditório da Fnac de Pinheiros, em São Paulo, de bermudas e alpargatas, participando de uma entrevista aberta no encontro anual do "Jornalirismo", uma iniciativa do jovem Guilherme Azevedo, que procura aproximar os grandes nomes da comunicação dos profissionais e estudantes da área.
Com algum desalento e dor no seu coração de eterno otimista, tanto que nunca deixou de ser corintiano, Washington fez a constatação acima sobre as mudanças no comportamento do brasileiro ao comentar que ultimamente estamos ficando mais grosseiros _ agressivos e intolerantes, eu acrescentaria _ quando lhe perguntei o que dava e o que não lhe dava esperanças no futuro do Brasil.
Pai de dois filhos pequenos, claro que como todos nós ele espera entregar um país melhor a eles, mas o grande entrave que vê para isso é a falta de uma Educação de qualidade, que acaba sendo a causa principal das nossas deficiências e mazelas atuais e, ao mesmo tempo, caso melhore um dia, a maior das esperanças no futuro.
Já estava pensando em escrever sobre esta onda de grosseria que se espalha como uma onda pelo País em todas as áreas da sociedade, quando estourou neste final de semana a selvageria das duas torcidas nas arquibancadas da Arena Joinville, onde jogavam neste domingo Atlético Paranaense e Vasco pela última rodada do Brasileirão.
Vocês já devem ter visto as inacreditáveis imagens de torcedores literalmente se trucidando uns aos outros, correndo para todos os lados e atropelando quem encontravam pela frente, como se os "black blocs" tivessem chegado ao futebol sem máscaras. Não bastava derrubar o inimigo. Era preciso chutar-lhe a cabeça, esmagar-lhe os testítulos a ponta-pés, humilhá-lo e exterminá-lo, se possível.
 Os black blocs do futebol e a onda de grosseria
Nunca tinha visto nada parecido, a não ser nos comentários do Fla-Flu político na internet, embora seja crescente a violência nos nossos estádios, tanto que muitos deles estão interditados, o que levou o jogo do Atlético Paranaense contra o carioca Vasco para Joinville, em Santa Catarina.
Ali se chegou ao limite da estupidez humana e de um quadro de total descontrole dos que deveriam zelar pela nossa segurança, mas as pequenas agressões, grosserias e baixarias cotidianas estão por toda parte, da internet ao shopping, do transito congestionado das ruas aos aeroportos em colapso, das praias às padarias, todo mundo querendo passar na frente do outro e levar alguma vantagem, nem que seja a golpes de buzinadas ou cotoveladas.
Senhoras finas em seus carrões off-road que circulam soberanas pelas alamedas dos Jardins empunham o dedo médio a três por quatro e soltam palavrões dignos das arquibancadas cada vez que algo as incomoda no trânsito, já que as ruas não são mais só delas e ainda por cima estão sendo tomadas por faixas exclusivas de ônibus, dividindo o espaço com carros lentos e velhos, dirigidos por motoristas de primeira viagem.
briga no transito Os black blocs do futebol e a onda de grosseria
O que aconteceu no estádio de Joinville neste domingo, onde quatro torcedores ficaram feridos _ um deles em estado grave, com fratura no crâneo _ e seis acabaram presos é apenas o reflexo da deterioração das relações humanas numa sociedade que já foi cordata e gentil, pedia com licença, por favor, dizia obrigado, dava bom dia, boa tarde e boa noite, e se desculpava quando esbarrava sem querer em alguém.
Um exemplo disso foi o que aconteceu comigo outro dia quando estava chegando ao dentista. Ao tentar descer no terceiro andar, uma senhora robusta colocou-se diante da porta e ameaçou avançar em cima de mim. Disse-lhe com toda educação: "Se a senhora não sair da frente, eu não consigo descer e a senhora não vai conseguir entrar". Fez cara feia, mas, mesmo contrariada, acabou dando um passo atrás. Evitou-se assim um conflito de maiores proporções e o elevador continuou circulando normalmente. Quantas cenas semelhantes a essa não estarão acontecendo neste momento em sua cidade, meu caro leitor?
Se você tiver outros casos destas cenas de incivilidade que campeiam por aí nos dias que antecedem o jingle-bel, e que deveriam nos tornar mais fraternos e tolerantes, pode mandar aqui para o Balaio. Bons exemplos, se os há, também serão bem recebidos. Não podemos nunca perder as esperanças.
Espero que todos cheguem sãos e salvos pelo menos até o Natal. O Brasileirão já acabou, mas nunca se sabe o que pode nos acontecer na próxima esquina.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Chora por Mandela, mas acha um absurdo pobre querer os mesmos direitos Leonardo Sakamoto 06/12/2013 10:47

Precisamos de mais pessoas como Mandela.
Pessoas que são capazes de usar a força quando necessário e adotar uma atitude conciliadora quando preciso. Mas que não descartam qualquer uma das duas acões políticas.
Por conta da morte de Mandela, estamos sendo soterrados por reportagens que louvam apenas um desses lados e esquece o outro, como se as folhas de uma árvore existissem sem o seu tronco e os galhos. O apartheid não morreu apenas por conta do sorriso bonito e das falas carismáticas do líder sul-africano, mas por décadas de luta firme contra a segregação coordenada por uma resistência que ele ajudou a estruturar.
É fascinante como regimes execrados pelo Ocidente foram, muitas vezes, os únicos que estenderam a mão a Mandela e à luta contra o apartheid. E como, décadas depois, muitos países prestam suas homenagens a ele, sem um mísero mea culpa por seu papel covarde durante sua prisão. Ou, pior: como veículos de comunicação desse mesmo Ocidente ignoram a complexidade da luta de Mandela, defendendo que o pacifismo foi o seu caminho.
Desculpem, mas a necessária conciliação para curar feridas ou a tolerância são diferentes de injustiça. E ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações em que um grupo de pessoas é aviltado por outro.
“Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para morrer'', disse ele, ao ser condenado a 27 anos de prisão.
As histórias das lutas sociais ao redor do mundo são porcamente ensinadas. Ao ler o que os jovens aprendem nas carteiras escolares ou no conteúdo trazido por nós jornalistas, fico com a impressão que a descolonização da Índia, o fim do apartheid na África do Sul ou a independência de Timor Leste foram obtidas apenas através de longas discussões regadas a chá e um pouco de desobediência. Dessa forma, a interpretação dos fatos, passada adiante, segue satisfatória aos grupos no poder.
Muitos que hoje lamentam por Mandela detestam manifestações públicas e mudanças no status quo.
Adoram um revolucionário quando este é reconhecido internacionalmente e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam quem ocupa propriedades, por exemplo, “impedindo o progresso''.
Leio reclamações da violência de protestos quando estes vêm dos mais pobres entre os mais pobres – “um estupro à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência. Ou ainda professores que exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público mude o comportamento. Todos eles são uns vândalos.
Daí, essa pessoa que ama Mandela, mas não sabe quem ele é, pensa: poxa, por que essa gente maltrapilha simplesmente não sofre em silêncio, né?
Muitas das leis criticadas em protestos e ocupações de terra ou mesmo no apartheid não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estavam ou estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Nem sempre a legalidade é justa. E essa frase assusta muita gente.
Mandela é a inspiração. Com ele, é possível acreditar que manifestações populares e ocupações resultem nos pequenos vencendo os grandes. E, com o tempo, os rotos e rasgados sendo capazes de sobrepujar ricos e poderosos.
Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos. Ou na tentativa de reescrever a história editando aquilo que não interessa.
Enquanto isso, mais um indígena foi morto no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem como Mandela.
Enfim, precisamos de mais pessoas como Mandela. Pois os bons do século 20 estão morrendo antes que realmente entendamos suas mensagens.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Opinião: Quando a Espanha sabia ser pobre com dignidade

ALMUDENA GRANDES
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
Ouvir o texto
The New York TimesNas manhãs geladas de inverno, as empregadas domésticas não andavam pelas ruas de Madri. Me recordo delas sempre correndo, com os braços cruzados sobre o peito para tentar conservar o calor de um casaco de lã. Me recordo também de alguns homens soturnos que caminhavam devagar, com as lapelas do paletó levantadas e uma mala de papelão na mão. Eu os olhava, me perguntava se não sentiam frio, me surpreendia com sua compostura e guardava minha curiosidade para mim mesma.
Nos anos 60 do século 20, a curiosidade era um vício perigoso para as crianças espanholas.
Crescemos entre fotografias -às vezes emolduradas sobre uma cômoda, às vezes escondidas numa gaveta- de pessoas jovens e sorridentes que não conhecíamos. Quem é? Eram tios ou noivos, primas ou irmãos, avôs ou amigas da família, e estavam mortos. Quando morreu? Faz muito tempo. Como foi, por que, o que aconteceu? Foi na guerra, ou depois da guerra, mas é uma história tão tenebrosa, é muito triste, é melhor não falar de assuntos desagradáveis.
Ali, naquele conflito misterioso do qual ninguém se atrevia a falar, embora ainda ardesse nos olhos dos adultos como uma ferida aberta, infectada pelo medo ou pela culpa, terminavam todas as conversas. Assim aprendemos a não perguntar muito antes de ler os terríveis e certeiros versos de Jaime Gil de Biedma: de todas as histórias da História, sem dúvida a mais triste é a da Espanha, porque termina mal.
Os espanhóis de hoje não gostam de se lembrar disso. Vivíamos em um país pobre, mas isso não era novidade.
Sempre tínhamos sido pobres, inclusive na época em que os reis da Espanha eram senhores do mundo, quando o ouro da América atravessava a península sem deixar em seu rastro mais que a poeira levantada pelas carroças que o levavam a Flandres, para saldar as dívidas da Coroa.
Na Madri de minha infância, onde um sobretudo era um luxo que não estava ao alcance das domésticas, nem dos trabalhadores diaristas que esperavam a hora de embarcar em um trem, a caminho da colheita de uvas francesas ou de uma fábrica alemã, a pobreza continuava sendo um destino familiar, a única herança que muitos pais podiam deixar para seus filhos.
Entretanto, nesse legado havia algo mais, uma riqueza que perdemos.
Olho para trás e me recordo de tudo, do frio, dos mendigos, dos silêncios, do nervosismo dos adultos quando cruzavam com um policial na calçada, de um costume antigo. Se um pedaço de pão caía ao chão, nos obrigavam a recolhê-lo e lhe dar um beijo antes de devolvê-lo à cesta de pão, porque houve muita fome em nossas casas quando morreram aquelas pessoas queridas de quem ninguém queria nos falar. Porém, por mais que eu me esforce, não me recordo da tristeza.
Da raiva, sim, dos maxilares cerrados, como que talhados em pedra, de alguns homens e mulheres que em uma só vida tinham acumulado tragédias suficientes para afundar-se seis vezes, mas que, não obstante, continuavam em pé. Porque na Espanha, até uns 30 anos atrás, os filhos herdavam a pobreza, mas também a dignidade de seus pais, uma maneira de ser pobre sem deixar de ser digno, sem deixar de lutar por seu futuro, sem nunca se dar por vencido.
Nem mesmo Franco, nos 36 anos de feroz ditadura que foram os frutos daquela guerra maldita, conseguiu evitar que seus inimigos prosperassem em condições atrozes, que se apaixonassem, que tivessem filhos, que fossem felizes. Na Espanha de minha infância, a felicidade era também uma maneira de resistir.
Depois nos disseram que era preciso continuar a esquecer. Que para construir a democracia era imprescindível olhar para frente, fazer como se nunca tivesse acontecido nada por aqui. E, ao esquecermos o ruim, também esquecemos o bom. Não parecia importante, porque de repente éramos bonitos, éramos modernos, estávamos na moda... Para quê recordar a guerra, a fome, centenas de milhares de mortos, tanta miséria?
Assim, renegando as mulheres sem sobretudo, as malas de papelão e os beijos no pão, perdemos os vínculos com nossa própria tradição, as referências que agora nos poderiam ajudar a superar esta nova pobreza que nos atacou de surpresa, vinda do coração dessa Europa que nos ia tornar ricos e que nos arrebatou um tesouro que não se compra com dinheiro.
Assim, nós, os espanhóis de hoje, mais que arruinados, estamos perdidos, abismados em uma confusão paralisante e inerme, desorientados como um menino mimado de quem tiraram os brinquedos e que não sabe protestar, reclamar o que era seu, denunciar o roubo, deter os ladrões.
Se nossos avôs nos vissem, primeiro morreriam de rir, depois morreriam de pena. Porque para eles isso não seria uma crise, mas um leve contratempo. Mas nós, que durante séculos soubemos ser pobres com dignidade, nunca soubemos ser dóceis.
Nunca, até agora.
A escritora espanhola Almudena Grandes publicou vários livros sobre a Guerra Civil Espanhola. Um deles, "El Corazón Helado", foi traduzido para vários idiomas, incluindo o inglês