terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Cem anos após assalto, Corinthians faz festa em palco que não receberia Neco Ídolo maloqueiro é digno de dar nome ao estádio de Itaquera, mas dificilmente o frequentaria

orinthians não chegaria aos 105 anos de vida sem Neco. Provavelmente, não chegaria nem aos cinco. Há um século, o jogador – protótipo do maloqueiro e sofredor valorizado pelo torcedor até hoje – comandou uma espécie de assalto à própria sede do clube, à beira da falência, salvando os bens sob risco de penhora.
Manoel Nunes também esteve entre aqueles que pegaram na enxada e transformaram em campo de futebol um terreno arrendado na Ponte Grande (atual Ponte das Bandeiras), a primeira casa oficial alvinegra. Um dos muitos motivos que levaram o historiador Celso Unzelte a sugerir que o estádio de Itaquera fosse batizado de Manoel Nunes “Neco”.
Atuando em várias posições do ataque, Neco defendeu o Corinthians entre 1913 e 1930 (foto: acervo/Gazeta Press)
Atuando em várias posições do ataque, Neco defendeu o Corinthians entre 1913 e 1930 (foto: acervo/Gazeta Press)

Quando falou sobre essa ideia à Gazeta Esportiva, em 2013, ele advertiu que não seria possível colocá-la em prática, pela necessidade de se comercializar o nome da arena da zona leste de São Paulo. A inauguração ocorreu há mais de um ano e meio e, apesar de múltiplas promessas, nenhuma empresa topou pagar para aposentar o provisório título Arena Corinthians.
“Até dava, né?”, sorriu Unzelte, revisitando a velha ideia e se mostrando contrário a uma homenagem a algum presidente. “Neco é um nome acima de qualquer suspeita, não tem política. Porque, se botar o nome do Matheus, a turma que é contra o Matheus não vai gostar. Se botar o do Andrés, a turma que não é do Andrés não vai gostar. Se botar o nome do Wadih Helou, também vai ter a turma do contra.”
Nenhum desses nomes será o escolhido. A diretoria se diz finalmente próxima de um acerto pela venda do que insiste em chamar de “naming rights”. De qualquer maneira, independentemente do termo adotado e da empresa compradora, gente como Manoel Nunes seguirá distante do estádio que deixou o Corinthians geograficamente mais perto da periferia e essencialmente mais longe do povo.
Manoel Domingos Corrêa se rendeu aos "carroceiros", o que não o livrou de levar uma surra de cinta (foto: reprodução)
Manoel Domingos Corrêa se rendeu aos “carroceiros”, o que não o livrou de levar uma surra de cinta (foto: reprodução)

“É… O público está mais para Manoel Domingos Corrêa”, afirmou Celso Unzelte, referindo-se ao rico comerciante português que foi desafeto do primeiro grande ídolo alvinegro. “Tem muito pouco de operário ali. Só seria o nome dele mesmo. O estádio não tem muito a ver com a legenda do velho Neco.”
Corrêa estava no campo do Velódromo, em 1913, em um dos jogos eliminatórios que deram ao Corinthians o direito de disputar seu primeiro Campeonato Paulista. Parte da elite que se enojava com a tentativa do povo de lhe tomar o futebol, o comerciante chamou a formação preta e branca do Bom Retiro de “time de carroceiros”. Nequinho, como ainda era conhecido, não suportou a ofensa.
Então um torcedor com 18 anos recém-completados, o futuro ídolo mostrou o temperamento que ajudaria a construir sua figura mítica, partindo para cima do grã-fino. O mesmo grã-fino que se renderia aos carroceiros e viraria dirigente do clube, sendo inicialmente tesoureiro e depois se tornando o 18º presidente, entre 1941 e 1943.
“Fiquei triste, pois nem ao menos o homem era corintiano. Estava lá só por causa do dinheiro”, lamentou Neco, muito tempo depois, em 1974, ainda magoado. Seu sentimento é ecoado no daqueles que não têm espaço no “palácio de mármore”, como alguns frequentadores do estádio do Corinthians o chamam.
The favela is here and the Corinthians is orange (foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)
The favela is here and the Corinthians is orange (foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)
Havia poucos Necos no palácio, no último domingo, na celebração de um título obtido com muita facilidade. Ainda assim, com ou sem dinheiro, em um edifício majestoso ou em um barraco de Itaquera, quem comemorou o hexa do Campeonato Brasileiro só o fez por causa daquele que sempre será a cara do clube.
A contribuição de Manoel Nunes vai muito além de seus 235 gols em 296 jogos ou de seus oito títulos paulistas. Nascido na mesma rua da agremiação preta e branca, cresceu com ela e a fez crescer. Usando a cinta – parte do uniforme de sua época e, de acordo com múltiplos relatos, sua arma favorita para intimidação – e assaltando o próprio Corinthians se necessário fosse.
Manoel Nunes morreu em 1977, aos 82 anos, sem nunca ter deixado de lado seu puro amor (foto: acervo/Gazeta Press)
Manoel Nunes morreu em 1977, aos 82 anos, sem nunca ter deixado de lado seu puro amor (foto: acervo/Gazeta Press)

Foi necessário há cem anos. Campeão da LPF (Liga Paulista de Futebol) em 1914 com 100% de aproveitamento, o time alvinegro tentou entrar na liga das equipes mais ricas, a Apea (Associação Paulista de Esportes Atléticos). Rejeitado, ficou sem campeonato para jogar em 1915 e se viu em enorme dificuldade financeira. “É o ano em que o clube quase foi à falência. O Corinthians quase fechou”, recordou Celso Unzelte, que revirou e continua revirando a história da agremiação.
Com o aluguel da pequena sede administrativa atrasado, veio a cobrança.
“O senhorio condescendeu a princípio. Conversou numa boa. Mas bastava olhar o rosto sem jeito dos rapazes para apalpar a interrogação que estava no ar: cadê o dinheiro senhor? Espremendo o bolso da moçada, revirando o forro, virando os sujeitos de cabeça para baixo, era mais fácil pular fora uma lagartixa que o ‘vil metal’”, descreveu o cronista Lourenço Diaféria, em seu estilo romanceado, no livro “Coração Corinthiano”.
“Precatado, já cismando o pior, o dono da salinha com toilette pôs as barbas de molho na bacia da prudência e avisou, com voz dura: ‘Ou acertam o aluguel ou… tranco tudo!’. E foi girando a chave na fechadura que ele havia mandado trocar. Dali não saía nem uma cadeira. Ficava tudo retido em garantia da dívida”, relatou Diaféria.
De acordo com Unzelte, não se tratava de nada de grande valor. Eram móveis e alguns troféus, principalmente de outros esportes, “mas era tudo o que o clube tinha”. Neco, então, propôs o furto.
“Combinou-se. Dito e feito. Madrugada fria e úmida, sem luar, naquela hora quieta em que até os grilos dormem, os vultos solertes caminharam nas trevas como duendes, forçaram as cremonas, treparam por uma escada de pintor de paredes – o clube tinha bons pintores em seu quadro associativo –, invadiram a saleta sem bulir na fechadura, retiraram tudinho, comandos em ação. Deixaram as quatro paredes nuas como a mulher de Adão. Até a folhinha de reclame de Ao Paraíso das Andorinhas – uma loja na rua Marques de Itu, nº 40, que vendia camisas para senhoras a 4 mil e quinhentos réis – carregaram embora”, seguiu Diaféria.
Na imaginação de Lourenço Diaféria, nem o folheto foi deixado para trás (foto: reprodução)
Na imaginação de Lourenço Diaféria, nem o folheto foi deixado para trás (foto: reprodução)
Quando o dono da saleta apareceu, na manhã seguinte, “os corinthianos haviam batido as asas sob o testemunho cúmplice das estrelas”. “A dívida do aluguel foi paga meses depois, sem pressa, sem afobação”, concluiu o cronista.
A folhinha de Ao Paraíso das Andorinhas provavelmente é fruto da fértil imaginação de Lourenço Diaféria. Aparentemente, o cronista também se confundiu em relação ao momento do furto, apontando 1912. É possível ainda que a salvação dos móveis e troféus no quinto ano de vida do clube não tenha sido decisiva para sua longevidade.
O que não se pode negar é o valor de Neco, puro amor alvinegro. Cem anos antes de 43.652 pessoas festejarem seu primeiro título em um estádio que custou mais de R$ 1 bilhão, ele estava tramando a invasão a uma saleta alugada para o Corinthians crescer.

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